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domingo, 15 de setembro de 2013

O Coreto da Memória (Conto de Ana Varela)



O CORETO DA MEMÓRIA

                A tarde estava solarenga e convidava a um passeio pela vila. Jacinto pegou no chapéu de palha, na bengala que usava para lhe amparar a passada por vezes incerta e pôs-se ao caminho. A vida em Alcáçovas era calma e pacífica, longe do rebuliço e da agitação de Setúbal, a terra que o viu nascer.

                Apaixonara-se pela vila da primeira vez que ali estivera, no distante ano de 1969, ainda ele era um jovem garboso, na flor da idade. Havia anos, muitos mais do que aqueles que ele tinha de vida, que a Banda de Música da Sociedade Capricho Setubalense fazia um intercâmbio com a Banda de Música da Sociedade União Alcaçovense, o que originava longas jornadas de música e animação para as gentes das duas terras, numa altura em que este convívio era fundamental para as pessoas se conhecerem, criarem laços e fugirem por uns dias às suas rotinas. Esse intercâmbio, existente já desde 1925, muito devido ao facto de a banda da terra de Jacinto ser na altura dirigida pelo Maestro Doménico Maia, natural de Alcáçovas, acabou por conduzir à construção de um belo coreto no centro da vila, no Largo Alexandre Herculano, cuja inauguração teve lugar a 29 de setembro de 1929. E foi precisamente por ocasião do quadragésimo aniversário dessa inauguração que a banda de música onde Jacinto tocava saxofone regressou a Alcáçovas, infelizmente já sem muitos dos membros que lá haviam estado na ocasião cujo aniversário então se comemorava.

                Mas não fora apenas pela vila que Jacinto se apaixonara naquele dia de outono de 1969. Entre as tocadoras de clarinete encontrava-se uma jovem morena, de tez escurecida pelo quente sol do Alentejo e olhos da cor das azeitonas que ganhava a vida a apanhar. Madalena era simplesmente a rapariga mais bonita que Jacinto alguma vez vira. A timidez que a fazia desviar o olhar de cada vez que os seus olhos se cruzavam tornava-a ainda mais apetecível aos olhos do rapaz.

                Depois do concerto de ambas as bandas, a assinalar o aniversário da inauguração do coreto que marcava a aliança existente entre estas duas bandas de música e que ocorreu ao final da tarde, para que a gente da terra se pudesse juntar na praça e assistir ao mesmo, seguiu-se festa pela noite dentro, com comida providenciada pelos habitantes da vila, que primavam e ainda primam, pela hospitalidade, e com o típico bailarico que fazia as delícias dos jovens e dos já menos jovens.

                Foi já perto das onze da noite que os dois chegaram a falas e logo se tornaram par fixo um do outro. Ao final da noite ou, querendo ser totalmente fidedignos, ao começo da manhã, o bailarico terminou, as comemorações cessaram e o intercâmbio musical chegou ao fim.

Jacinto e Madalena prometeram corresponder-se e trocaram juras de amor eterno que aquele encontro fugaz não conseguiu concretizar. Despediram-se com um beijo, roubado às escondidas, porque Madalena era uma menina respeitável e não podia ser vista a beijar o primeiro marmanjo que lhe aparecesse à porta. Jacinto apanhou o comboio juntamente com os seus colegas de banda e regressou a Setúbal, enlevado pela paixão.

***

Dois dias depois, chegou a malfadada carta. Uma convocatória para se apresentar no Regimento de Cavalaria da Ajuda. Jacinto partiria para a Guerra Colonial dali a três dias. Foi a pior notícia que o rapaz poderia ter recebido naquela fria manhã de outubro. Sentiu como se mil espadas lhe perfurassem o coração e foi como se tivesse morrido já ali, antes mesmo de embarcar para um futuro incerto, em terras africanas. Afinal, na sua cabeça, o seu futuro próximo já estava traçado: assumiria as rédeas da fábrica de conservas da família e traria Madalena para Setúbal, onde casariam e seriam felizes para sempre. Voltariam a Alcáçovas pelo menos uma vez por ano, para reviver a ocasião em que se haviam conhecido e para a jovem matar saudades da família. Teriam cinco filhos e todos eles aprenderiam a tocar instrumentos musicais, ingressando na Banda de Música da Sociedade Capricho Setubalense e podendo assim continuar com o intercâmbio na vila de Alcáçovas, tocando naquele lindo coreto onde os pais se haviam conhecido.

Contudo, parecia que os anjos estavam contra ele e contra aquele amor tão puro e tão forte que ele sentia e no qual tinha a certeza de ser correspondido. Assim que obteve a infeliz confirmação, tratou de enviar uma carta para Madalena, a explicar a situação em que se encontrava e a pedir-lhe que esperasse por ele, que ele voltaria para realizar tudo aquilo que imaginara para o futuro de ambos e que ainda haveriam de ser muito felizes.

***

Madalena recebeu a carta num misto de ansiedade e alegria. Alegria por reconhecer naquelas palavras rabiscadas em papel de carta aquele sentimento que lhe assolava o ser e que ela até então não conhecera e ansiedade, pois conhecia bem as agruras da guerra e sabia que quem parte pode já não voltar. Fora o que acontecera ao seu irmão Joaquim, que, quatro anos antes, partira para o Ultramar e de quem, no regresso, voltou apenas a notícia de ter sucumbido a uma emboscada dos rebeldes. A jovem guardou aquelas palavras, escritas pelo alvo do seu amor na bainha da fronha onde todas as noites deitava a cabeça cansada de um dia de labuta no campo alentejano e esperou, conforme Jacinto lhe pedira.

As notícias de Jacinto, todavia, tardavam em chegar. Depois daquela missiva de más novas envoltas numa neblina de esperança num futuro distante, não voltou a receber qualquer outra carta do rapaz, nem um postal, nem mesmo um telegrama a dar as más notícias que tanto temia. Madalena, que antes era alegre e divertida, começou a tornar-se apagada, triste e melancólica, uma sombra do que havia sido.

Os pais da jovem, vendo-a enlevada por aquela paixão que a consumia a cada dia que passava, e com medo de que a filha ficasse para sempre agarrada e dependente de uma ideia ilusória que certamente nem resultaria em nada, pois o rapaz podia morrer lá na guerra, podia encontrar uma rapariga de quem gostasse e nunca mais voltar ou até mesmo ter-se pura e simplesmente esquecido dela, acabaram por forjar o tão famigerado telegrama que Madalena nunca desejaria receber, baseando-se naquele que eles próprios, anos antes, haviam recebido a comunicar a morte, em infeliz hora, mas carregada de honra, do seu filho Joaquim.

Madalena recebeu o telegrama e viu toda a sua esperança e ânimo morrer com a notícia do desaparecimento em combate daquele a quem entregara o seu coração. Como se o mundo tivesse parado de girar naquele preciso instante, a jovem caiu ao chão em desespero e, embora o seu corpo se tivesse voltado a erguer horas depois, depois de se secarem todas as lágrimas que em si trazia, a sua alma ficou ali, naquele Largo Alexandre Herculano, mesmo ao lado do coreto, onde estava quando lhe entregaram aquela folha de papel que alteraria, para sempre, o rumo da sua vida.

O inverno do ano que se seguiu teve rigores pouco usuais nas planícies alentejanas e os pais da jovem acabaram por sucumbir a uma grave pneumonia que os atacou e levou com um espaço de 15 dias entre eles. Madalena ficou, portanto, só, sem meios de se sustentar. Poucas semanas depois, acabou por ir para Évora, servir na casa da tia de uma prima afastada que precisava de uma rapariga que lhe tratasse da casa, lhe fizesse as refeições e, sobretudo, companhia nas longas noites de insónias. A jovem presenteava-a com pequenos concertos de clarinete, ao serão, e acabou mesmo por ingressar na Banda de Évora, onde continuou a desenvolver os seus dotes musicais e onde conheceu Amílcar, um jovem de boas famílias, com quem acabou por casar. Apesar de nunca ter esquecido Jacinto, Amílcar era um bom homem e tratava-a bem, pelo que se pode dizer que levou uma vida feliz.

***

Jacinto regressou da Guerra Colonial em 1974, agastado por nunca haver recebido qualquer resposta às cartas que enviara para Madalena. Momentos houve em que duvidou do amor que ela sentiria por ele, outros em que pensou que algo lhe devia ter acontecido e outros em que se perguntou se as cartas que lhe enviava lhe estariam a chegar às mãos. Na verdade, a ideia de enviá-las para Setúbal, para casa dos pais, juntamente com as notícias que enviava à família e depender depois da boa vontade da família em enviá-las para Alcáçovas sempre lhe parecera um disparate, mas a verdade é que, na pressa, deixara a morada de Madalena em Setúbal e esta era, afinal, a maneira de mandar notícias para os dois locais, uma vez que apenas lhe permitiam enviar uma carta por semana. O pai do rapaz, no entanto, não vira com bons olhos aquela ligação a uma rapariga de classe baixa, vinda das brenhas do Alentejo, que ele conhecera fugazmente numa das deslocações da banda e por quem se perdera de amores e nunca reencaminhou as apaixonadas missivas que Jacinto destinara a Madalena.

Ao regressar e indo contra a vontade do pai, que lhe dizia que se a rapariga não lhe respondia era porque certamente já encontrara outro por quem se enamorara, Jacinto tomou o comboio rumo a Alcáçovas, partindo à procura da amada e de uma justificação. No entanto, não a encontrou. Nem a ela, nem a ninguém que lhe soubesse dar informações concretas, pois os pais haviam falecido, dizia-se que de pneumonia, e a rapariga tinha ido para a cidade, em busca de uma vida melhor.

Destroçado, Jacinto regressou a Setúbal, sem saber mais por onde procurar. O pai acabou por falecer, em meados da década de 1980 e tal como havia vaticinado, embora não nos mesmos contornos, Jacinto assumiu a liderança da fábrica de conservas. No entanto, com a chegada da crise económica da década de 2000, Jacinto viu-se obrigado a abrir falência e a procurar um novo rumo para a sua vida. A verdade é que nunca conseguira esquecer Madalena, por muito breve que o encontro dos dois tivesse sido, e acabou por nunca encontrar nenhuma outra mulher que lhe despertasse o desejo de constituir família como sentira em relação àquela rapariga morena que tocava clarinete.

***

Em agosto de 2010, recebeu um convite da Banda de Música da Sociedade Capricho Setubalense, que por ocasião do 80º aniversário da inauguração do Coreto de Alcáçovas, voltaria a deslocar-se àquela vila alentejana para lá realizar um concerto em colaboração com a Banda de Música da Sociedade União Alcaçovense e convidava todos os membros e antigos membros da mesma a participar nas comemorações. Ao início, Jacinto pensou que não iria. Afinal, aquilo acabaria por trazer recordações do passado e só contribuiria ainda mais para a sua depressão, diagnosticada meses antes por um importante psiquiatra da capital. No entanto, e muito por insistência desse mesmo médico, Jacinto acabou por apanhar novamente o comboio rumo ao Alentejo e, a 12 de setembro, lá estava ele, na primeira fila do Largo Alexandre Herculano, que se encontrava decorado a rigor, para assistir ao concerto. Até levara consigo o saxofone, caso surgisse a oportunidade de tocar.

Depois dos discursos e agradecimentos, chegou a vez de homenagear os membros e antigos membros que compuseram as duas bandas ao longo dos anos. Um a um, a Presidente da Junta de Freguesia foi chamando ao palco instalado no coreto da vila os nomes das pessoas que por lá haviam passado, ao longo daqueles 80 anos de intercâmbio.

Jacinto de Oliveira Magalhães. O nome ecoou na cabeça de Madalena, sentada três filas atrás. Ao ver um homem grisalho a levantar-se para receber a homenagem, não conseguiu reprimir um grito. Afinal, aquele que ele julgava morto havia mais de 35 anos estava ali, bem vivo, à frente dela. Jacinto virou-se e reconheceu nela a jovem Madalena, morena, olhos de cor de azeitona, embora apresentasse agora algumas rugas num rosto marcado pelo tempo e pela idade.

Ultrapassado o choque inicial e refeitos do susto, rapidamente se afastaram das comemorações, que se prolongaram noite dentro, tal como havia acontecido 40 anos antes. Os dois mal podiam acreditar que, 40 anos volvidos, se viriam a reencontrar no mesmo sítio, por ocasião de um aniversário que, afinal, era também o deles.

***

Madalena, viúva havia três anos, regressou a Alcáçovas e comprou a quinta onde a sua família trabalhara, transformando-a num turismo rural, a que deu o nome de "O Coreto da Memória". Passados poucos meses, Jacinto juntou-se a ela. Os dois casaram e vivem agora na tranquilidade do Alentejo, vivendo agora um amor que, na juventude, lhes fora roubado. Todos os dias passeiam pela vila com paragem obrigatória no jardim junto ao coreto, onde, no verão, comem um gelado e, no inverno, se deliciam com as castanhas assadas.

 

Ana Varela – Conto

 

(Escrito segundo as normas do Acordo Ortográfico de 1990)

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