Aos doze, varejava azeitonas, que a escola foi feita para os doutores e para entreter as meninas de famílias fartas, em lições de uma economia doméstica que nunca viriam a conhecer. Aos quatorze meteu os pés numas botas de couro escuro e estas ao caminho e viu-se arrastada pelas enchentes dos da Terra que corriam atrás do trabalho, para aonde quer que ele fugisse. No caminho para lá e para cá, ao som dos tacões no solo rijo, da chuva nas lonas que tapavam as carroças quando as labutas eram de longe, cantava alto e rematava os estribilhos com aquele rir honesto e grande, tirado ao peito, arrancado do ventre. Aos dezasseis era uma mulher, caiava as paredes que de tão alvas já se confundiam com o brilho cegante dos dias de calma. Antes de raiar o astro na linha tremeluzente do horizonte, já cheirava a sabão na soleira da porta da casa da Rita. Tudo resplandecia: a luz e o reflexo do mundo em cada gota de água e a vida pela frente na fileira de dentes certinhos, brancos como tudo na Terra, repousando no rosto da Rita.
  Era ela quem as movia a todas: à 
Maria Ana, à Antónia, à Josefa, à Conceição, fazia-as sair da cama de um pulo, 
para encher os bancos de uma missa a que ninguém queria assistir, só para se 
poderem trocar olhares, murmurar recados por debaixo das mantilhas- num segundo 
fugaz- com os rapazes que de um domingo para outro, se fizeram homens, capazes 
de tomarem uma mulher nos braços e fazê-la sua. A Rita punha-se distraída, não 
eram para ela esses preparos. Tinha sete irmãos todos pequenos, para seus filhos 
pouco faltava. Desatinava o grupo, provocando a risota, as bochechas a corar e 
uma ou outra mais casta ou de mãe mais irascível a afastar-se, lesta, pela 
calçada da igreja afora. A Rita era uma canção antiga que depois de tantos anos, 
tantas lágrimas, os muitos filhos não paridos mas criados, fruto dos seus 
vaticínios de juventude, ainda dizia os mesmos versos, ainda "cantava 
alegremente a Primavera" tal qual os rouxinóis e os pardais.
  A sua mão amorosa- 
mais que condescendente- passou por cima de muitas cabeças travessas e 
atravessadas. Ela sabia do que falava quando dizia que todo o mundo é uma aldeia 
e que não há nada para saber para além dos limites dela, que a vida toda se vê 
no pôr do sol sobre as searas ou no cantar dos ralos à noite. A Rita que ria nas 
cartadas aos serões ou à chegada das cegonhas, de asas largas, pousando na boca 
da chaminé, foi-se aguentando com a cara bonita, sulcada de pequenas estradas 
pelos anos. E quando as pernas decidiram não mais percorrer os trilhos da Terra, 
de peito aberto e sorriso profundo, procurou a sombra da mesma soleira de 
décadas, à porta da casa branca de seus pais, para encostar o banco de 
palhinhas. Sentava-se aí, de olhos semicerrados a ouvir os gaiatos a brincar ao 
avião, às pedrinhas, à apanhada, a tudo e a nada. 
  Embalava nos braços 
os meninos de todas as mães que já não os podiam calar, num ondear eterno e 
generoso de quem nunca gerando de si, por isso se desdobrava em muitos, em 
todos. E quando o dia acabava, o céu roxo a pôr auréola de tranquilidade numa 
hora em que tudo encaixou e a Terra girou no movimento esperado, a Rita abria a 
boca e soltava a sua gargalhada de fêmea satisfeita, de mulher completa e 
recolhia-se ao lar. 
  Não se sabe bem se 
chegou a fazer um esgar ou se se contorceu o rosto, ou se pelo contrário, se 
manteve impávida na hora do abandono. Encontrou-a uma sobrinha: a cabeça 
pendendo para a esquerda, um fiozinho de lágrimas quase imperceptível 
correndo-lhe dos olhos e a boca vazia de dentes, desenhando a linha enorme do 
sorriso (ou teria sido do riso?) franco, de nascente a poente. No entanto, o que 
contam na Terra, homens e mulheres feitos, é que a gargalhada da Rita se ouviu 
nessa hora pela última vez com uma força que não se lhe conhecia. Rasgando o céu 
azul, atravessando-se pelo meio do bando de pássaros migratórios e por cima do 
telhado raso das casas, foi pousar numa azinheira, na orla de uma charneca lá 
longe, onde o eco acaba. Onde descansam os que não tendo mais jornas que vencer, 
se permitem descansar numa qualquer dobra do vento, num qualquer sopro de vida 
na Terra.
Copiado do Blog da nossa comadre Ana Terra: http://aterradaana.blogspot.pt/

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