Ao Miguel: pela honra que é ver um
homem a nascer de um menino.
Os donos da Terra não são os
senhores dos montes, dos campos a perder de vista, delimitados aqui e ali pelos
muros de pedra levantada do solo. Quem manda por estes lados não é o senhor do
solar no centro da vila ali a dois passos, pois não. Este chão é pertença dos
verdadeiros reis da Terra: os meninos-homens que ganharam as ruas, os bandos de
rapazes que as percorrem de fio a pavio desde que o dia é dia até que a noite se
esgueire por debaixo da Terra. Eles aí vão: o Inácio, o Joaquim, o Zé Miguel, o
Galito, o Petanca, o Papa-bichos, o Corre-mundos... Invadem a aldeia com a sua
algazarra, cortam as esquinas com seus aros e varas, bolas de pano, corridas de
pneus, jogos de guerra. São homens pequenos e muitos deles já trabalham, outros
estão a começar a deitar corpo, a sonhar acordados. Ouviram as primeiras letras e já
sabem fazer versos, rimas de namorados. Calçam botas, vestem coletes
esterlicadinhos para irem em grupo, aos bailes da sociedade. Põem-se à porta da
padaria, a morder palhinhas, a cheirar o ar quente, de moedas contadas, à espera
que a porta abra para serem os primeiros a ferrar o dente num bolo folhado, num
olhinho de mel. Há um que é filho do mestre da
música, é o Panças: anda a aprender o acordeão. Parece um homem do alto dos seus
doze anos. Os outros acompanham-no com vozes a tremerem entre a idade que têm e
a que querem ter. Carregam a lenha às mães, fazem mandados na venda para as
avós, assobiam orgulhosos de machadinha nas mãos enquanto aprendem a podar
videiras, a enxertar oliveiras, a matar um porco e tudo o mais que os pais lhes
possam ensinar, que dois braços em casa querem-se é para
trabalhar. Mas os meninos de pele morena,
cabelos fartos, olhos de azeitona bical e buço tímido querem antes os braços
para saltar ao alho, para puxar a fisga com força e atirar aos pássaros.
Fazem-se fortes, a correr pelos campos infinitos, pelos horizontes profundos,
tão longínquos que os fazem crer que eles próprios são invencíveis. Como o ar
que respiram, como o sol que lhes cobre as cabeças, os chapéus de abas ou os
bonés de feltro. Fazem lutas corpo a
corpo,entesam os músculos joelhos esgravatados, narizes a sangrar, as pastas da
escola a voarem por todo o lado, para num assobio, darem tudo por acabado e
lançarem-se à água, nus em pêlo, numa irmandade indizível de crianças a
fazerem-se adultos com a mesma vontade, a mesma gana de viver, o mesmo ímpeto
com que as águas da ribeira galgam as margens e alagam a Terra durante as
chuvadas. No avesso de um menino vive já o
pai dos seus filhos, o marido da sua mulher, latejam já as pernas que hão-de
caminhar sobre a Terra dia após dia num vagar reconfortante de quem cumpre a sua
jorna, de quem sabe que encaixa. De quem dá e recebe vida. E são os gaiatos correndo pelos
caminhos, calcando bem o chão que os acolhe quem dá à Terra o seu sustento,
fazendo dela a casa de outros mais que hão-de vir. Para que não se perca nunca a
infância dos homens.
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