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sábado, 10 de dezembro de 2016

Vacas Garvonesas


À excepção do relevo da zona de Santana da Serra, concelho de Ourique, o cenário que se avista poderia ser descrito por um fotógrafo em missão na savana africana. O Sol vai quase no zénite e uma manada de uma centena de herbívoros pasta calmamente. Algumas fêmeas chamam as crias que, apesar da ausência de predadores, deixaram escondidas entre a vegetação enquanto se alimentam, fruto do seu instinto primordial de presas. Dois machos medem forças, entrelaçando os chifres e um acaba por reforçar o domínio sobre o harém. Vários juvenis lutam, imitando os adultos numa brincadeira que os preparará para duelos futuros.  Se começássemos por lhe dizer que este património biológico está ameaçado e que está em curso um projecto para a sua conservação, seguramente pensaria numa espécie selvagem em perigo. Na verdade, é à vida selvagem que associamos a ideia de conservação da natureza, mas o alvo do programa, desta vez, são vacas. Vacas, touros e crias da raça bovina garvonesa.
Apesar de ser uma das menos conhecidas raças bovinas portuguesas, no passado, a raça garvonesa ocupava os campos de praticamente toda a região central e litoral do Baixo Alentejo, onde era usada para tracção de alfaias e carros de bois. Com a mecanização da agricultura, sobretudo na segunda metade do século XX, “o gado farrusco” perdeu o seu propósito principal e foi sendo substituído por raças exóticas importadas, sobretudo de França, que serviam melhor o propósito da produção de carne. Em 1994, o bovino garvonês estava perto da extinção.
Foi então que o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) levou a cabo o Projecto de Recuperação e Manutenção do Bovino Garvonês. “Foi essencialmente uma manobra de resgate e agrupamento do maior número possível de animais, que se encontravam dispersos em pequenos núcleos, por forma a garantir a sobrevivência da raça”, comenta José Pereira, da Associação de Agricultores do Campo Branco (AACB), entidade detentora do registo zootécnico da raça. “Fez-se depois a caracterização morfológica e o registo como raça autóctone e tem sido essencial o envolvimento dos criadores que, muitas vezes contrariando tendências económicas mais imediatas, têm abraçado a criação da garvonesa.” O projecto contribuiu para o aumento do efectivo de cerca de oitenta animais para os quatrocentos actuais.
A conservação de animais domésticos autóctones representa um esforço valioso. Estes estão quase sempre bem adaptados ao clima onde se desenvolveram, possibilitando a criação em regime extensivo e a manutenção de um ecossistema diversificado. Bem geridos, estes efectivos podem representar um factor económico cativante numa fase de grande procura de produtos “de origem protegida” e “biológicos”. Ao mesmo tempo, preservam um património insubstituível, que encerra em si partes da história e evolução cultural de uma região, adaptando-o às novas realidades.
Na Herdade da Mata, uma exploração agrícola em Alcáçovas, existe hoje uma das maiores manadas da raça garvonesa. Os proprietários suíços integram os animais nos passeios pedagógicos de agroturismo que disponibilizam aos visitantes. Mas a equipa do Centro de Experimentação do Baixo Alentejo e AACB que aqui encontro, volvidos 18 anos sobre o projecto do PNSACV, tem um propósito diferente. Recolhe amostras de sangue e pêlo de alguns dos 120 animais que aqui existem. O objectivo da recolha, no âmbito de um segundo projecto de conservação, agora em curso, é a extracção de DNA para caracterização genética e demográfica da raça, numa tentativa de viabilizar condições para a existência de animais saudáveis a longo prazo. A população encontra-se estável, dispersa por oito explorações pelo Alentejo mas “a raça está 
classificada como Ameaçada de Extinção e os riscos de aumento da consanguinidade são elevados, já que todos os animais procedem do único criador que restava na década de 1980”, diz Carlos Bettencourt, médico veterinário e secretário-técnico da raça garvonesa.
Cerca de uma década antes do projecto do PNSACV, uma figura local do concelho de Ourique, o médico António Semedo, reparou no iminente desaparecimento desta raça e deu o primeiro passo para contrariar a tendência comprando as vacas que encontrava. Havia um problema: António Semedo já não tinha, nem conhecia ninguém, com um macho reprodutor. Foi quase por acaso que numa feira encontrou um touro e o comprou. É provavelmente graças a este gesto que ainda dispomos da raça. “Após a análise genética, proceder-se-á ao cruzamento de machos e fêmeas o menos aparentados possível, tentando preservar a diversidade genética dentro da raça”, diz Carlos Bettencourt. Se os esforços forem bem sucedidos, o panorama de sobrevivência da raça garvonesa será promissor.
Embora útil e desejável, o cruzamento de animais pouco aparentados pode não ser suficiente, exigindo alguma intervenção humana para diversificar o caldo genético. “A salvação da raça poderá requerer a introdução de sangue exterior, por exemplo de animais da raça alentejana não inscritos no Livro Genealógico da mesma e que sejam morfologicamente semelhantes aos garvoneses, assegurando a sua viabilidade ao mesmo tempo que se conservam as características da garvonesa”, realça Catarina Ginja, do Centro de Biologia Ambiental da Universidade de Lisboa.
A presença e o culto de bovinos na região alentejana é ancestral, mas a presença de gado bovino do tronco aquitânico, no qual a raça garvonesa se insere, só se consegue traçar com certezas desde o século XV. É, porém, provável que, embora sem a relevância da classificação como raça, já nesse tempo, os animais nesta região do Alentejo fossem semelhantes aos que hoje chamamos garvoneses. “É uma raça muito distinta, com características genéticas e morfológicas únicas, sem paralelo nas raças espanholas, como temos noutros casos de raças portuguesas”, diz Catarina Ginja. Segundo um estudo genético desta especialista, a garvonesa está bem diferenciada da raça alentejana, o que reforça o carácter histórico, social e cultural que estes animais terão tido ao longo de séculos, no Baixo Alentejo.
Em São Martinho das Amoreiras, no concelho de Odemira, Manuel Domingos cria a raça garvonesa “à antiga”. A manada é pequena: seis vacas e um touro, mais um punhado de bezerros. Duas vacas “são mansas” e aptas para lavrar a terra. Aqui, onde as ideias de conservação, perfil genético e consanguinidade são palavrões modernos, ouvidos apenas nas visitas que técnicos da AACB fazem para certificar os bezerros, Manuel Domingos recorda que “no outro tempo, o gado dava de tudo um pouco. Os animais eram valentes para puxar charruas e carretas, o estrume aproveitava-se, iam às arramadas e controlava-se melhor o que comiam, havia menos desperdício, está a ver? Até dos chifres, depois de mortos, se faziam bilhas para o azeite”.
De facto, poucas relações com animais terão tido tanta relevância na história da humanidade como a que levou, há cerca de oito mil anos, à domesticação do gado bovino. Esta domesticação foi agilizada com o propósito de obter alimento e depois para a função de trabalho. No processo, enriqueceu sobremaneira a vivência humana. Manuel Domingos olha uma das suas vacas e diz, com um riso melancólico: “Hoje, aproveitam-lhes a carninha e pouco mais.” 
Passou o tempo em que as razões para estes animais existirem eram palpáveis e pragmáticas. Dependem hoje de encontrarmos formas de valorização. Se não for suficiente o valor afectivo pelo legado que representam, relembremos o seu valor ambiental e económico, se explorados produtos de nicho. Longe das savanas ou florestas tropicais que o nosso imaginário rapidamente invoca ao pensarmos em conservação da natureza, esta e outras raças e espécies domésticas carecem de atenção. O futuro, para já, apresenta-se moderadamente risonho para a vaca garvonesa.

Foto: Vacas Garvonesas na Herdade da Mata, em Alcáçovas
Texto copiado do site: https://nationalgeographic.sapo.pt/

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