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terça-feira, 16 de maio de 2017
Uma estranha amizade
O caminho que desde o monte, (casa de um só piso com uma porta e duas janelas alindadas com barras dum azul forte, situado no cabeço mais elevado,) descia até à horta, no vale, era embelezado por duas fileiras de oliveiras que certamente teriam mais de cem anos, atendendo à espessura dos seus troncos.
Em tempos de Primavera, mais parecia que aquele era o caminho que nos levava ao céu, tal a quantidade e a diversidade de cambiantes das flores silvestres que o bordejavam.
E não era raro por ali se verem ninhadas de perdigotos atrás de suas mães que, como por artes mágicas, em menos de um minuto se deixavam de ver, desapareciam, camuflados debaixo de uma qualquer flor…
Os láparos, esses corriam desalmadamente a caminho dos buracos protectores. A horta era um pequeno oásis em toda aquela campina que apenas vertia água em tempos de invernia. Zacarias tinha muito orgulho nela: projectada por ele como se para um concurso fosse, tudo era ali estudado! À esquerda os canteiros das ervas aromáticas: salsa, coentros, hortelã, erva-cidreira, hortelã da ribeira, poejos. A seguir a parte destinada às couves: galega, de desfolhar, os repolhos. As abóboras, que lindas ficavam depois de crescerem, essas ficariam logo ali a seguir às melancias que por serem de regadio eram enormes, sumarentas e doces, e ficavam junto aos melões, principalmente melões de casca de carvalho, que mais aguentavam e que faziam as delícias de qualquer mesa até lá já bem por dentro do Inverno, pendurados em redes feitas de ráfia ou de junça alindavam qualquer tecto de habitação…
O feijoal era lá mais para o fundo, não muito longe do milheiral. Por tudo quanto fosse regadeira, o TI Zacarias semeava flores, que comprava em pacotes da marca “José Afonso Duarte”. Como eram lindas as cristas de galo…
Mas era todos os anos a mesma coisa. Mal as espigas de milho da horta do Ti Zacarias do Monte começavam a ficar amareladas, logo começavam a aparecer as primeiras bicadas das mejengras e dos pardais do campo.
- Maldita praga! Nem as deixam criar! Ainda estão em leite e já as andam a atacar, mas eu hei-de tratar de vocês… vociferava o bom ancião contra a passarada que assim lhe destruíam parte da colheita com que iria alimentar as suas galinhas poedeiras.
Numa tarde de Outono, pardacenta, o ti Zacarias chegou a casa e disse para a mulher:
- Ó Tonha, tu não tens p’rá aí uns farrapos velhos para fazermos um espantalho para prantarmos na horta por mor da passarada não nos comerem o milho todo?
A mulher pensou e lá lhe disse que se arranjavam uns trapos velhos que para lá havia. E foi mãos à obra: o Ti Zacarias arranjou uns molhos de junça e com umas cordas fez assim algo que se pareciam com umas pernas e com uns braços abertos. A sua Tonha com uns novelos que tinham sobrado de fazer a última manta de retalhos fez uma enorme bola com a qual construiu a cabeça do espantalho. Depois foi só enfiar-lhe uma camisa do marido já debota pelo tempo e pelo suor, mais umas ceroulas rotas pelo uso. O espantalho estava feito. A seguir espetaram-lhe um pau mais ou menos ao fundo das supostas costas e colocaram-no ali bem no meio do milheiral da horta, ficando suficientemente alto para ser visto de qualquer ângulo. Ah! já me esquecia de dizer, na cabeça do espantalho foi colocado um enorme chapéu de ceifeira, que a Tonha usara nos tempos em que em nova trabalhou – e muito – no campo, ceifando dias a fio, debaixo de um sol que era fogo.
Zacarias do Monte escondeu-se no meio dum silvado que existia junto à horta, um pouco para lá da “cegonha” com que tirava a água do poço para a rega e viu como os pardais se aproximavam em voo apressado, distraídos, e como faziam uma rápida manobra no sentido de se afastarem o mais rapidamente possível daquele intruso metido ali no meio do milho onde tanto gostavam de ir debicar as suculentas maçarocas. Zacarias ficou contente e voltou para o monte. Tinha a certeza que achara uma solução para o seu problema.
O tempo passou, veio o Inverno e o espantalho, abandonado e só, sofreu com os enormes frios que se fizeram sentir. Todos sabemos como são “duras” as geadas no Alentejo…
Finalmente chegou nova Primavera, radiosa, resplandecente. A pouco e pouco os pardais foram perdendo o medo e aproximando-se do espantalho.
Este, imóvel mas atento, via-os cada vez mais perto. Um dia um pardalito dos novos, das ninhadas desse ano mas já meio empenado, disse-lhe:
- Olá Senhor Espantalho, quer ser meu amigo?
-Não posso, disse o Espantalho. O meu dono não quer que eu seja vosso amigo, vocês comem-lhe o milho todo.
- E o Senhor Espantalho acha que ele é seu amigo, deixando-o aqui ao frio no Inverno e agora quando vier o Verão à “torrina” do sol?
- Lá isso…
-Pois, se o Senhor quisesse ser meu amigo, eu vinha visitá-lo e quando me apercebesse que o seu dono se aproximava haveria de arranjar maneira de fugir antes de ele me ver.
- E tu não comes as maçarocas de milho?
- Só se fôr lá para o Outono…e só uma. Olhe, fazíamos assim: prometo que comerei sempre da mesma maçaroca. Escolherei uma das mais baixas de modo que o seu dono pense que em vez dos pássaros são os ratos que lhe comem o milho….
- Está bem. Se for só uma, eu aceito a tua amizade. Podes poisar nos meus braços abertos que não te farei mal. Já tenho saudades de falar com alguém, de fazer amizades…
…Conta-se que o pardal poisou nos braços do Espantalho, depois docemente, deu uma bicadinha à laia de beijo naquela cara inexpressiva feita de tiras de fazer mantas de retalho, selando assim uma amizade que à partida parecia impossível. Todos as tardes o pardal amigo do espantalho lhe vinha contar as novidades que vira por esses campos fora. E ele, espantalho, tentava preservar aquela amizade que o tornara mais feliz e menos horrendo por, contra sua vontade, estar ali a fazer mal aos passarinhos. E um dia, já de novo Outono adiantado, disse ao pardal seu amigo:
- Sabes uma coisa, amigo? Hoje ouvi o meu dono dizer para a mulher que tinham que inventar qualquer coisa contra os ratos, pois que já havia uma maçaroca comida lá ao fundo da horta e rentinho do chão. Só podiam ser os malditos dos ratos!
Ambos deram uma sã gargalhada reveladora de uma verdadeira amizade e o agora pardalão, que já fora pardalito, deu novo beijo na cara do Espantalho.
Não há amizades impossíveis….
Março de 2017
a) Nota - O autor não aderiu ao novo acordo ortográfico.
Autor: Fernando Máximo/Avis
Copiado do grupo do Facebook: https://www.facebook.com/groups/imagensdoalentejo/
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