Sempre ouvimos dizer que o queijo de Abril é o melhor. Se não é, pelo menos, era. A afirmação ainda continua a fazer sentido, se bem que a tradição já não seja o que era. Vivemos num tempo em que há produção de queijo durante os doze meses do ano. Abençoadas ovelhas ou seja lá o que for
Tradicionalmente, na nossa região, os meses fortes do fabrico do queijo artesanal eram Março, Abril e Maio, e a grande montra de negócios era a Feira de S. João, em Évora.
Que nos desculpem os amigos leitores que detestam este lácteo alimento, mas a memória que temos do queijo fresco acabadinho de sair dos cinchos bem como do almece e do requeijão polvilhados com canela e açúcar fez-nos reavivar cheiros e sabores fortes, práticas ancestrais e muitas outras lembranças.
Procurámos dar as voltas que um queijo dá, quer dizer, dava. Falámos com antigos pastores e queijeiras, e ainda com muita outra gente que, de uma maneira ou de outra, esteve ligada ao pastoreio e à arte de fazer queijos.
Recuámos no tempo. Fomos até ao campo. Era ali que tudo começava, com o apriscar das ovelhas. Os antigos apriscos (priscos), cada vez mais raros, eram longos e estreitos corredores de estacas e rede onde as ovelhas, mais ou menos alinhadas, eram submetidas à ordenha. As que não davam leite eram transferidas para o alfeire.
Convém dizer que, ao invés do que hoje acontece, predominava a raça merino, de lã negra. Havia a convicção de que eram animais mais resistentes.
Num seguidismo quase fatalista, lá ia a compacta legião de fêmeas atrás da ovelha cabresteira, que se distinguia das suas congéneres por possuir, como enfeite, umas borlas no dorso, nas cruzes e nas ancas. Também o som do seu rústico chocalhar era diferente.
Em muitos rebanhos existia um carneiro cabresteiro, que, como comandante à frente das tropas, impunha a sua liderança até à cabeceira do aprisco. Não se inveje, porém, a sorte do macho. O animal era capado e desprovido da ponta dos cornos ou mesmo mocho de nascença.
Alguma ovelha mais dada a tresmalhos ou que mostrasse relutância em dar o seu contributo leiteiro tinha de se haver com a destreza dos cães, sempre vigilantes.
A bem ou a mal, a fecunda ovelhada, com os tetos rijos de leite, lá enfiava pela apertada manga de rede, onde o pastor e o respectivo ajuda, um de cada lado, se preparavam para mungir os animais.
Se necessário, os homens podiam contar com o apoio da chamada ovelha amparadeira. Bastava a tranquila e sólida presença junto do pastor ou um ligeiro encosto nas parceiras para tornar as coisas mais fáceis.
Ali por perto, havia, cravados no chão, um pau com forcas ou umas estacas, onde se penduravam o ferrado, os cântaros, as medidas, o funil, o coador…
Tudo a postos, toca a ordenhar. Para os homens, eram longas e incómodas horas a castigar a espinha. O trabalho exigia um enorme esforço físico, quase violento. Também se pedia alguma habilidade manual. Os dedos polegar e indicador eram peças-chave para fazer esguichar os jactos de leite para dentro do ferrado. Os calos acumulavam-se nos dedos dos pastores e dos ajudas. Se os rins davam sinal ou o trabalho exauria as forças, havia que achar posição e procurar firmeza com os cotovelos assentes nos joelhos. Ordenhavam-se, com frequência, duzentas, trezentas ovelhas. Às vezes mais.
As calças de ordenha, umas serapilheiras toscas, tresandavam a ovelhum. Cheiro intenso! Não havia lugar para esquisitices. Era preciso fazer duas ordenhas diárias: uma de madrugada, ainda escuro, e outra à tarde.
Entre outras coisas, tinha de se estar atento, não fosse alguma ovelha mais desleixada descuidar-se com algumas caganitas para dentro do ferrado. Tinham de ser os homens a pescá-las com os dedos.
Ninguém morreu por via disso! Tudo era genuinamente natural. Quem fazia a ordenha estava acostumado a beber o leite cru, acabado de sair dos tetos. É igualmente verdade que certos pastores só toleravam o líquido já depois de atabafado. Um rico mata-bicho, dizem.
Também o almece ou atabefe, como alguns lhe chamam, constituía refeição regular durante este tempo de Primavera. Entre o Carnaval e a Páscoa, determinados lavradores davam ao pessoal, invariavelmente, feijão com abóbora ou almece.
Fazia parte das regras que os pastores tivessem direito à primeira ordenha do domingo, as chamadas domingueiras. Muitos guardadores faziam negócio com o leite; outros aproveitavam-no para queijo. Insinuam alguns que, aos sábados, as ovelhas tinham direito às melhores pastagens e eram menos apertadas durante a ordenha. Diz-se tudo!
Tirado o leite, este era levado pelos roupeiros até às queijarias. Muitas casas agrícolas faziam os seus próprios queijos. O transporte era feito de carroça ou de burro, com os cântaros de um lado e de outro do jumento. Longas e pacientes caminhadas!
Para falar do fabrico do queijo, nada como conversar com quem passou quase uma vida inteira nessa lida.
No antigo Largo da Cadeia, onde vivemos parte da infância e da adolescência, morava uma das mulheres que muito sabia da arte das queijarias. Era só atravessar o largo e lá íamos nós à procura dos fresquíssimos queijos, das bolas compactas de requeijão ou do almece ainda morno. Era ali também que encontrávamos os amanteigados queijos de correr, os de meia cura e outros já mais curados.
A nossa vizinha queijeira era Maria Jacinta Conceição Cornacho (a Bia, para familiares e amigos). Os seus esclarecidos 87 anos ainda permitem recordar, a par e passo, o que era o trabalho numa queijaria.
A aprendizagem, fê-la na casa dos pais. Desde os 8 ou 9 anos que se lembra de fazer queijos. Ela e os irmãos. Antes de vir, já depois da casada, para a casa do largo, viveu e trabalhou noutros lugares, nomeadamente no monte junto à estrada de Lavre, no sopé da Nª Srª da Conceição.
Os meses de Primavera não permitiam descanso. Era uma vida presa, que exigia muito trabalho e responsabilidade, e sempre com aquele cheiro entranhado. A nossa antiga vizinha não resistiu a confessar-nos o embaraço que sentia, sempre que ia à missa e ouvia comentar à sua volta: Cheira aqui a queijo! Não havia volta a dar.
Mas vamos lá ao fabrico do produto artesanal. Duas vezes por dia, da manhã e à tarde, chegavam os roupeiros ou os pastores para deixarem o leite. Duzentos, às vezes, trezentos litros diários. De seguida, o espesso líquido era passado por um coador com vários panos. O número dependia das impurezas do leite. Chegavam a ser cinco, seis panos. As queijeiras já conheciam quem eram os pastores mais asseados ou nem por isso.
Por vezes, quem fazia o transporte ajudava a coar o leite. Um dos panos levava uma porção de sal. O líquido coado caía dentro de uma panela, que era levada, depois, para perto do lume. A temperatura do leite era importante. A experiência e a sensibilidade das mãos das queijeiras dispensava termómetro, mas, se houvesse necessidade, sabia-se que os trinta e poucos graus seriam os ideais.
Para coalhar o leite, juntava-se-lhe o cardo, previamente posto de molho e macerado. A partir de certa altura, houve gente que passou a utilizar outros produtos menos naturais. Sempre à beira do lume, leite e cardo iam sendo pacientemente mexidos com uma cana e, assim que se considerava pronta a coalhada, a panela era envolta em cobertores, permanecendo tudo em repouso durante cerca de uma hora. Segredos do negócio.
Seguia-se, depois, a fase de passar a coalhada para a francela, a banca onde as mulheres esmigalhavam e espremiam a branca massa, moldando-a nos cinchos e deixando escorrer o chilro (o soro) para dentro de um alguidar. É costume dizer-se que mãos frias fazem melhor queijo.
O tamanho da francela dependia do movimento da queijaria e do número de braços de trabalho. Por vezes, laboravam duas ou três mulheres de cada lado.
Não se julgue que o chilro era desaproveitado. Nem pensar! Era passado para um grande tacho ou lata e, em cima de uma trempe, ficava ao lume até abrir fervura. Dali saía o requeijão, apertado em panos brancos e pendurado, e também o almece, tão amado por uns e detestado por outros. A nossa queijeira recordou, entretanto, os serões que passou a pesar quilos e meios-quilos do cobiçado requeijão.
No fim, o que sobejava dava paria encher a barriga a alguns animais.
Voltando um pouco atrás, à francela, os queijos destinados à cura levavam sal dos dois lados e, depois de contados, eram colocados em tabuleiros e levados para secar nos caniços ou em rede de arame. Eram milheiros de queijos para vigiar, virar, lavar…
O tempo húmido e o vento eram grandes inimigos. Em vez de haver cura, a massa escorria como velas a pingar. Grandes prejuízos!
Da nossa parte, ficam “milheiros” de coisas por contar. Apesar do tema central ser o queijo, não se pense que houve esquecimento. É mesmo falta de espaço para escrever. Até à próxima!
Texto gentilmente cedido pelo nosso compadre Vítor Guita.