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quinta-feira, 18 de junho de 2020

Grilos




Grilos!
Íamos aos bandos no pico da primavera, quando o calor começa a "apertar" e os grilos iniciam as suas sinfonias pelos campos floridos de malmequer, rosmaninho, lirio roxo, alecrim e outras flores silvestres, mal as aulas desse dia terminassem.
Os gaiatos andavam na sua maioria na faixa etária entre os 8 e os 12 anos, alguns até mais, nomeadamente aqueles que prolongavam o tempo de escola, pois nem todos passavam de ano quando deviam.
O objetivo da gaiatagem era apanhar o maior número possível de grilos, procurando assim obter algum rendimento que de outra forma não conseguiriam, depois de baterem à porta do Sr. João da Torrinha, ali na Rua do Paço e que era quem os comprava para comercializar em Lisboa.
Hoje poderiamos considerar que a rapaziada tinha tendência para o empreendedorismo, mas nesse tempo, empreender era fazer por ter o que comer. E claro que não seriam os grilos!
Estes por sua vez, não iriam servir de composição gastronómica em algum restaurante de chineses, porque penso, nessa altura ainda os não havia.
Eram comprados pelos "alfacinhas" e alentejanos há muito radicados e saudosos, metidos em gaiolas com uma folha de alface para sua alimentação (os grilos, não as pessoas), esperando ouvir o troar das suas asas.
O Sr. Torrinha não pagava muito por cada um, cujo preço à época equivaleria hoje a 3 ou 5 centimos por grilo, mas era "exigente" na qualidade, pois teriam de ter as 4 pernas com que se moviam.
E a falta de uma delas tornava logo ali o grilo grátis para o Sr. Torrinha, ou não ficaria com ele. E claro, para que queriam os rapazes os grilos pernetas?
A falta de uma perna não impedia o grilo de cantar, mas dava-lhe cabo da estética. Agora se os bichos cantavam ou não, era outra coisa, vá-se lá a saber, só o comprador o descobriria.
No entanto, não pensem que o Sr. Torrinha era um forreta ou mau pagador, pois quando iam miúdos daqueles mais novitos (iniciados nesta atividade sazonal) que levavam 2 ou 3 grilitos, enquanto os "matulões" batidos nisto entregavam contados e recontados 20 ou 30 grilos, ele acabava a ignorar a falta da 4a perna do grilo e pagava na mesma aos miúdos.
Aliás o Sr. Torrinha tinha uma boa perceção da dificil vida que algumas pessoas da terra tinham e sabendo que alguns dos pais desses rapazes estavam sem trabalho, muitas vezes recusava receber dinheiro pelo habitual pacote de café que lhe iam comprar com regularidade e que era outro dos seus negócios. Já que o café era uma parte essencial da alimentação, porque com ele pela manhã se tomavam as habituais "sopas de café com leite" e que regra geral alimentava os gaiatos praticamente até à hora do jantar.
Digam-mos antes, que se o Sr. Torrinha tivesse algum título social seria o de "benemérito" e muito fica por contar.
Então na "caça" aos grilos era um ver se te avias observar a azáfama dos gaiatos pelos campos, de calções e alguns ainda descalços a arranharem as pernas e a picarem os pés nos cardos e em outras plantas mais agressivas, debruçando-se sobre as "talocas" dos bichos, após a escutada sinalização sonora e a identificação do buraco, que aliás muitas vezes se dava apenas pela pesquisa deste, identificando a presença de grilo pelos pequenitos mas esclarecedores dejetos do bicho.
Onde não houvesse cagadela, grilo não haveria de certeza!
Debruçados, mas de palhinha na mão com o comprimento suficiente para chegar ao fundo do buraco onde estaria o bicho, mas flexivel e resistente o bastante para em movimentos verticais de cima para baixo, fazer sair o grilo da "taloca", incomodado pela ousadia e persistência do bate, bate, do utilizador.
Por vezes era necessária muita paciência para esperar que o grilo se chateasse e saísse, mas quando esta faltava ou grilo não haveria, porque de casa já não precisava, o rapaz sem sem saber se este estava ou não, ajoelhava-se sob o orificio, pousava a palhinha, desapertava a berguilha (carcela, para os nortenhos) subtraia o instrumentozito e "mijava" para dentro do refúgio do bichito.
Não, não era masoquismo aplicado ao grilo, era apenas outro meio de o fazer sair no imediato para que não morresse lá dentro, intoxicado pelos vapores do liquido morno.
Mas o mais certo mesmo era sair uma grila. E desculpem-me os seres femininos, as grilas ou eram ignoradas ou "chacinadas" pelos pés do rapaz, pela fama que estas tinham de canibalismo após o famoso "ato", vingando assim o sexo mais fraco!
De uma forma ou de outra, assim que o grilo pusesse toda a sua constituição fisica no exterior, o rapaz antes de o apanhar metia um dedo na "taloca" a fim de evitar a fuga do grilo novamente para o seu interior. Apanhado, era metido numa caixa de fósforos vazia, num "cartuxo" de papel ou numa caixa de sapatos sem estes, que já tinham uns pequenitos orificios feitos para evitar a morte dos grilos por asfixia.
E de taloca em taloca, quando concluíam ter o suficiente rendimento do dia ou escurecendo já, cansados de "dar à palha", lá iam os rapazes fornecer o carregamento do Sr. Torrinha para Lisboa.
Dinheiro ganho, dinheiro gasto no primeiro lugar onde se vendesse rebuçados, outras guloseimas ou cromos da bola. Era a filosofia de quem coisas destas não teria se assim não obtivesse os proventos.
Felizmente que hoje ninguém apanha grilos e ouvi-los cantar nos campos é bem mais agradável quando neles passeamos.
Não sou saudosista, por natureza, mas também porque dificilmente alguém terá saudades dos tempos dificeis que poderá ter vivido algures no passado.
Mas é pena que não se veja a miudagem de hoje a brincar ou a descobrir os segredos da vida campestre na natureza. Os pais preferem antes que estejam ociosa e permanentemente "agarrados" aos écrans dos tabletes, telemóveis ou da play stations a contribuirem para a obesidade e a diabetes infantil, com o pretexto da segurança.
A aprendizagem das competências na utilização dos equipamentos e sistemas digitais são essenciais para o futuro das crianças, mas o equilibrio entre estes saberes e o desenvolvimento fisico e intelectual, baseado no meio ambiente é que tornará a população infantil mais saudável em todos os aspetos da sua evolução.
E havendo cada vez menos inclinação para a ida aos campos ver as árvores, as flores, as aves e os grilos cantar, por troca com as idas ao "shoping", o equilibrio ecológico cederá mais facilmente às alterações climáticas!
Outros tempos, outras vontades!

Texto e fotos da autoria do nosso compadre Manuel Montemor.

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