Parece-me ainda vê-lo, ao cimo da Rua do Outeiro da Saudade, junto às
grades, aqui em Avis. De baixa estatura, coxeava por causa de um
“defeito de nascença”, no seu dizer. No entanto não lhe olhassem para o
corpo: tinha cá um vozeirão que se estendia pela Rua Machado dos Santos,
pela Rua António José de Almeida e ainda ecoava lá para os lados da
Igreja do Convento:
QUEM QUISER…SARDINHAS A DEZ TOSTÕES…E CARAPAUS A CINCO TOSTÕES…VÁ À LOJA DO XICO FIGUEIRA….
O Ti João Caga-Barro era o pregoeiro de Avis. Numa altura em que nem se sonhava ainda com SMS ou com “Internetes”, o Ti João era o meio mais rápido, eficiente, eficaz e barato de se fazer anunciar qualquer novidade na vila. Antes dele já o Ti António Pereira, “O Taleigadas”, exercera aquele ofício. Mas, ao que consta, certo dia convidaram o Ti João para experimentar a apregoar e fê-lo a custo zero. A partir daí já era sempre ele o pregoeiro de serviço….
A verdade é que, apesar de não haver SMS nem “Internetes”, já havia concorrência. Não raras vezes acontecia que depois de na parte da manhã ter apregoado o peixe da Loja do Xico Figueira, já à tarde apregoava o peixe da Loja do Jeremias que estava agora a um preço mais barato….como vimos, não cobrava honorários e por estes serviços costumavam pagar-lhe em géneros: davam-lhe umas sardinhas ou uns carapaus…
Lá para os lados dos Arrabaldes também era certo e sabido fazerem-se ouvir os seus pregões: as ruas estreitas, como que canalizavam a voz do Ti João, cá desde cima, da Rua de S. Roque, até bem lá para o fundo da Rua das Videiras….ou da Rua dos Mercadores…ou da Rua do Meio…
“…QUEM ACHAR… UM BRINCO DE OURO… VENHA TER COMIGO QUE EU LHE DIREI QUEM É O DONO… E ELE LHE DARÁ ALVÍSSARAS…”
Ora, sem cobrar quaisquer verbas por estes serviços, é claro que o Ti João Caga-Barro – que desconhecia a origem do anexim, apenas sabendo que era filho do António Caga-Barro e que desde sempre assim foi chamado, não lhe causando o anexim qualquer incómodo – tinha outras “artes”. Podia dizer-se que era um homem dos sete ofícios: desde muito novo começou a trabalhar num Telheiro, lá para a Herdade de Fonte Ferreira, onde, na companhia do pai, fazia tijolos, manilhas e tabiques para tectos. Por volta dos 19 anos foi trabalhar para o campo, por conta do Senhor Zé Braga: ceifou, ordenhou ovelhas, foi encarregado das parelhas e foi roupeiro. Mais tarde foi trabalhar para a Câmara: fez calçada, varreu as ruas, andou com a carroça da Câmara, foi coveiro substituto e quando passou a efectivo na Câmara ganhava duzentos escudos mensais. Ia com o Dr. Álvaro ver os porcos que estavam no matadouro. Quando se reformou já era funcionário da Junta Pecuária onde desempenhava as funções de ajudante de veterinário.
Mas voltemos aos pregões…certa vez uns indivíduos estavam bêbedos e mandaram-no apregoar que na Sociedade da Bola estava uma pessoa à espera do Xico Berrigato. Este ouviu o pregão e quando chegou à Bola deu com os outros três já embriagados. Por esse serviço ganhou dois copos de vinho branco…
Enquanto funcionário da Câmara, no “tempo da outra senhora”, era ele que estava encarregado de recolher todos os papéis clandestinos que por aí se espalhavam, propaganda política contra a ditadura. O Ti João sabia bem quem colocava os papéis nas ruas de Avis, chegando a aconselhar alguns para terem cuidado, mas que estivessem descansados com ele que não diria nada. E nunca disse.
Desculpem de quando em vez desviar-me dos pregões…voltemos então…
Uma vez o Ti João achou um fio de criança, em ouro, ali para os lados da Rua dos Calados. Ele próprio se encarregou de lançar de imediato um pregão do achado. Quando a mãe da criança veio ter com ele para receber o fio quis gratificá-lo. O Ti João Caga-Barro recusou porque afinal ela ainda era mais pobre do que ele…
Penso que quase todas as vilas e aldeias do nosso Alentejo tiveram o seu “Ti João Caga-Barro”. Hoje vivem apenas na recordação daqueles que com eles conviveram.
Em Avis há muito que se deixou de ouvir a voz do pregoeiro. O Ti João já morreu há algum tempo e ele foi de certeza o último e, quiçá, o melhor pregoeiro de Avis.
Foi em sua memória e em memória de todos os pregoeiros do nosso Alentejo, que me decidi fazer esta crónica.
Avis, Fevereiro de 2016
Texto gentilmente cedido pelo nosso compadre Fernando Máximo e retirado do grupo do Facebook:
Imagens do Alentejo, https://www.facebook.com/groups/imagensdoalentejo/
Foto da autoria de Maria Amélia Barão.
QUEM QUISER…SARDINHAS A DEZ TOSTÕES…E CARAPAUS A CINCO TOSTÕES…VÁ À LOJA DO XICO FIGUEIRA….
O Ti João Caga-Barro era o pregoeiro de Avis. Numa altura em que nem se sonhava ainda com SMS ou com “Internetes”, o Ti João era o meio mais rápido, eficiente, eficaz e barato de se fazer anunciar qualquer novidade na vila. Antes dele já o Ti António Pereira, “O Taleigadas”, exercera aquele ofício. Mas, ao que consta, certo dia convidaram o Ti João para experimentar a apregoar e fê-lo a custo zero. A partir daí já era sempre ele o pregoeiro de serviço….
A verdade é que, apesar de não haver SMS nem “Internetes”, já havia concorrência. Não raras vezes acontecia que depois de na parte da manhã ter apregoado o peixe da Loja do Xico Figueira, já à tarde apregoava o peixe da Loja do Jeremias que estava agora a um preço mais barato….como vimos, não cobrava honorários e por estes serviços costumavam pagar-lhe em géneros: davam-lhe umas sardinhas ou uns carapaus…
Lá para os lados dos Arrabaldes também era certo e sabido fazerem-se ouvir os seus pregões: as ruas estreitas, como que canalizavam a voz do Ti João, cá desde cima, da Rua de S. Roque, até bem lá para o fundo da Rua das Videiras….ou da Rua dos Mercadores…ou da Rua do Meio…
“…QUEM ACHAR… UM BRINCO DE OURO… VENHA TER COMIGO QUE EU LHE DIREI QUEM É O DONO… E ELE LHE DARÁ ALVÍSSARAS…”
Ora, sem cobrar quaisquer verbas por estes serviços, é claro que o Ti João Caga-Barro – que desconhecia a origem do anexim, apenas sabendo que era filho do António Caga-Barro e que desde sempre assim foi chamado, não lhe causando o anexim qualquer incómodo – tinha outras “artes”. Podia dizer-se que era um homem dos sete ofícios: desde muito novo começou a trabalhar num Telheiro, lá para a Herdade de Fonte Ferreira, onde, na companhia do pai, fazia tijolos, manilhas e tabiques para tectos. Por volta dos 19 anos foi trabalhar para o campo, por conta do Senhor Zé Braga: ceifou, ordenhou ovelhas, foi encarregado das parelhas e foi roupeiro. Mais tarde foi trabalhar para a Câmara: fez calçada, varreu as ruas, andou com a carroça da Câmara, foi coveiro substituto e quando passou a efectivo na Câmara ganhava duzentos escudos mensais. Ia com o Dr. Álvaro ver os porcos que estavam no matadouro. Quando se reformou já era funcionário da Junta Pecuária onde desempenhava as funções de ajudante de veterinário.
Mas voltemos aos pregões…certa vez uns indivíduos estavam bêbedos e mandaram-no apregoar que na Sociedade da Bola estava uma pessoa à espera do Xico Berrigato. Este ouviu o pregão e quando chegou à Bola deu com os outros três já embriagados. Por esse serviço ganhou dois copos de vinho branco…
Enquanto funcionário da Câmara, no “tempo da outra senhora”, era ele que estava encarregado de recolher todos os papéis clandestinos que por aí se espalhavam, propaganda política contra a ditadura. O Ti João sabia bem quem colocava os papéis nas ruas de Avis, chegando a aconselhar alguns para terem cuidado, mas que estivessem descansados com ele que não diria nada. E nunca disse.
Desculpem de quando em vez desviar-me dos pregões…voltemos então…
Uma vez o Ti João achou um fio de criança, em ouro, ali para os lados da Rua dos Calados. Ele próprio se encarregou de lançar de imediato um pregão do achado. Quando a mãe da criança veio ter com ele para receber o fio quis gratificá-lo. O Ti João Caga-Barro recusou porque afinal ela ainda era mais pobre do que ele…
Penso que quase todas as vilas e aldeias do nosso Alentejo tiveram o seu “Ti João Caga-Barro”. Hoje vivem apenas na recordação daqueles que com eles conviveram.
Em Avis há muito que se deixou de ouvir a voz do pregoeiro. O Ti João já morreu há algum tempo e ele foi de certeza o último e, quiçá, o melhor pregoeiro de Avis.
Foi em sua memória e em memória de todos os pregoeiros do nosso Alentejo, que me decidi fazer esta crónica.
Avis, Fevereiro de 2016
Texto gentilmente cedido pelo nosso compadre Fernando Máximo e retirado do grupo do Facebook:
Imagens do Alentejo, https://www.facebook.com/groups/imagensdoalentejo/
Foto da autoria de Maria Amélia Barão.
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