terça-feira, 9 de julho de 2013

Cante no feminino.

«Ceifeiras de Pias» e «Papoilas do Enxoé» são dois grupos corais femininos do Alentejo. Com eles empreendemos uma viagem ao mundo do cante alentejano, um património oral onde também cabem as mulheres. Os primeiros grupos corais femininos surgiram somente na década de 1970, 40 anos depois das primeiras formações masculinas. Hoje, são ainda minoritários.

Mariana Cristina, responsável pelo Grupo Coral Feminino «As Ceifeiras de Pias», dá indicações aos 21 membros do grupo. Dos 8 aos 84 anos, «arrumam-se» em diversas carreiras, umas atrás das outras, formando um triângulo. Dão os braços 
que, juntamente com o arrastar lento e ritmado dos pés, ajuda ao balancear característico dos grupos corais alentejanos.

O grupo coral foi constituído em 2009 e Mariana Cristina está nele desde os primeiros meses. «Vestimo-nos todas de modo diferente porque desde logo entendemos que antigamente as mulheres quando iam para o campo não se vestiam igual. Comprámos os tecidos e fizemos as nossas roupas», comenta Mariana. Em comum, a foice da ceifeira, o lenço na cabeça e o chapéu.

  O grupo está «arrumado», é hora de entoar as primeiras notas. As cantigas pertencem ao cancioneiro tradicional alentejano, o mesmo onde os grupos corais masculinos vão «beber» as suas modas. Quase sempre os versos descrevem o dia-a-dia no campo. «O Cante foi uma prática quotidiana no seio das comunidades alentejanas dos finais do século XIX e princípios do século XX, cantado por homens e mulheres no trabalho, na ida e vinda do trabalho, no lar, na taberna, nos bailes e festas locais», comenta Sónia Cabeça investigadora do cante feminino.

Ao contrário do que muitas vezes é sugerido, o cante alentejano no feminino é tão genuíno quanto o masculino. Sónia Cabeça explica que «esse entendimento, infelizmente ainda hoje veiculado, de que a mulher não tem tradicionalmente lugar no cante, se deve ao facto de se associar a sua genuinidade apenas à sua expressão coral, aos grupos corais».

No entanto, os grupos corais mais antigos datam da década de 1920, mas o cante é anterior a isso. «Ao criar esse formato [grupo coral], a mulher vê-se arredada da prática formal do cante. Ela não teve lugar nos grupos, não podemos esquecer o papel que era atribuído à mulher na altura, mas continua a cantar. Foi-lhe vedado inicialmente o acesso a determinadas modalidades do cante porque o espaço social da mulher não incluía nem a taberna nem o grupo coral, mas ela sempre foi intérprete do cante», acrescenta a investigadora.

Alheias a estas discussões estão as «Ceifeiras de Pias» que a várias vozes, umas mais agudas que outras, vão contando histórias, em rima, do trabalho do campo, dos amores e dos desamores, do quotidiano da planície.

Sónia Cabeça considera que «muitos destes grupos femininos vêm revitalizar não só peças do repertório do cancioneiro tradicional votadas ao abandono pelos grupos formais, como outras tradições locais entretanto caídas em desuso. Hoje, vários grupos femininos, masculinos e mistos adoptam este “novo” repertório, como por exemplo, o cante ao menino, os reis e as janeiras. Por outro lado, muitas modas haviam sido forjadas no seio dos grupos outrora exclusivamente masculinos. Ora a mulher, por deles estar arredada, não as cantava e estas não estavam adaptadas às suas vozes. Hoje, elas fazem parte do repertório comum».


 A investigadora sublinha ainda que «cantando em conjunto ou separado, nada impede que homens e mulheres cantem as mesmas modas».

As «Ceifeiras de Pias» terminam a sua apresentação. Há ainda tempo para ouvir o Grupo Coral Feminino «Papoilas do Enxoé», de Vale de Vargo. Juntam-se, como o grupo anterior, sob a orientação de Sebastião, o ensaiador do grupo. O membro mais velho conta já 77 anos, enquanto os mais novos têm pouco mais que uma década de vida. Vestidas de ceifeiras, mondadeiras, de chefe, de aguadeira, as «Paoilas do Enxoé» recriam as profissões de antigamente. Para Sebastião, as mulheres não conseguem cantar as mesmas modas que os homens, por isso ensaia com este grupo «modas mais leves que se adaptam melhor à voz feminina», diz.

Ao cancioneiro alentejano vai buscar as cantigas mais antigas para o grupo de 23 membros cantar.

Recuando no tempo, Sónia Cabeça adianta que «o grupo feminino mais antigo ainda em actividade data de 1979. É o Grupo Coral Feminino “Flores de Primavera” de Ervidel, na altura constituído por sugestão de um senhor e formado por várias jovens casadas, o que resultou num coro de críticas na sua terra. Seguiram-se, já nos anos 80, o Grupo Coral e Etnográfico Feminino “As Camponesas de Castro Verde” (1984) e um grupo entretanto desaparecido nas Alcáçovas».

Possivelmente, esclarece a investigadora, estas formações femininas acontecem depois de se interrogarem: «“Se os homens cantam em grupos, porque não as mulheres?”». Sónia Cabeça diz que «terá sido, porventura, esta a questão que a maioria dos primeiros grupos femininos colocou. Mas a mulher continuou a ser um elemento minoritário no universo dos grupos corais e só no final do século XX e princípios do século XXI encontrou maior expressão. Fazendo uma contagem um pouco grosseira, posso afirmar que entre 1995 e 2005 foram fundados pelo menos 25 grupos corais femininos que ainda hoje se mantêm no activo».
Reportagem da comadre Sandra Pelicano,

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