sábado, 6 de janeiro de 2018

Chove Terra ( By Ana Terra)

Foto:: https://nit.pt/out-of-town/back-in-town/dark-sky-chuva-estrelas-alqueva
Créditos: http://www.miguelclaro.com/wp/

"Hello darkness, my old friend
I've come to talk with you again
Because a vision softly creeping
Left its seeds while I was sleeping
And the vision that was planted in my brain
Still remains within the sound of silence"
                                      
                                 Simon & Garfunkel, The Sound of Silence



Chove de rijo na terra. Chicotes de água açoitam as margens das ribeiras, os açudes ressequidos pelo abraço de brasa, opressivo do sol. Saltam, salpicam gomos cheios de água prenhes de arco-íris, espelhos transparentes do céu que os mandou.Vêm redondos, perfeitos como olhos de perdizes a invadir a planície e esparramam-se desenvergonhada e desordeiramente pelas fendas no solo, chegando ao seu fundo numa fusão infinita, cega e fundamental. 

  A Terra conhece água. Os que não são dela, dizem que não é assim. Não é verdade. Terra é água e dela vive. Em torno dela, isto é. 
Falta, abunda. Tira, dá. Destrói, cria. Com água se inundam os olhos de todas as Mães da Terra quando o peito se abre em sulcos como os do chão que pisam. Água é o que corre pela testa, por debaixo das boinas, lenços, de todos os Homens que não conhecem estações ou dias de cores diferentes. Água para parir, água para lavar, água para ungir, benzer, inundar de vida e de sagrado (e não é isto falar do mesmo?). 

  Água nas cantarinhas a saber a barro, tão fresca, tão renovada que se diria estar o dito utensílio em lugar de fonte jorrando água constante do centro da Terra. Água em baldes de lata atirados ao ar, desenhando curvas liquidas em redor das soleiras das portas que depois se esfregam com panos, vassouras até que brilhem muito mais que os astros e as entradas das vizinhas. Água para nadar, como se veio ao mundo, sentindo os barbos, bogas, achegãs roçarem as pernas, e os pés escorregando nas pedras musgosas a fazerem leito. 

  Chove com força, como um látego pesado no dorso da Terra. É tudo ou nada deste lado do rio. Este Sul que é mais sentido do que geográfico tem os extremos de um território inóspito mas apetecível; os desvelos de uma mãe carinhosa com mãos rugosas, ásperas mas com perfume de leite e mel, um toque de hortelã e poejo. Sul que sente ainda o cheiro do oceano e que se diz plano mesmo do seu ponto mais alto. Que deixa vir água do céu e a recebe como a um deus descido do Olimpo dignando-se a caminhar na Terra. 

  Só que quando chove neste Sul, é de verdade. Com uma intensidade, uma ânsia desconhecida noutras paragens. Uma vontade imensa de absorver a água toda que se não vier carregada, gorda, pesada, depressa desaparece na imensidão, nos vastos caminhos de terra da Terra.

  Lava-te pois Terra, faz lama nas ruas ladeadas de paredes brancas caiadas, abre as bocas dos ribeiros que as circundam e faz-lhes salpicos só de pirraça. Obriga as moças a calçarem as botas de borracha para irem à venda ou à missa, os rapazes a abrigarem-se no telheiro da escola ou os velhos a recolherem ao lar, por dentro do útero da cozinha de onde parecem jamais querer sair. Faz-te nova, avança. Lavra o teu chão e prepara-te para lançar as tuas sementes. Mais tarde as mandarás com beijos das abelhas nas flores, pelos bicos dos pássaros celestes a Terras fora de ti. 

  Sabes que é assim que se recomeça. Que se renasce. Água e Terra fazendo Vida. 


Texto da autoria da nossa comadre Ana Terra, copiado do seu blogue:
http://aterradaana.blogspot.pt/

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