O CANTE ALENTEJANO
Da companhia nasce a vontade, o relaxo espevita o apetite e do longe vêm os sons que galvanizam os ânimos, depois os olhares vidram-se fixados em vultos, sombras ou sóis que flamejam, a mente começa a regurgitar memórias estilizadas que passam a fio como anátemas, de mão dada, reflectindo-se disformes no quadro do pensamento. Das entranhas soltam-se ais e gritos, trovões de razões caladas, murmúrios perdidos desde a antiguidade, risadas também, libertas em tempos passados, em espaços abertos, donde o vento as levou para sempre, sem deixar sequer um eco para hoje ser sorriso.
As bocas vão ficando mais escancaradas à medida que o sentimento incha nos peitos, notam-se então os corpos possessos duma magia que transparece nas vaias, crispam-se as mãos e os olhos cerram-se, a inspiração acende-se, o deleite aumenta, abre fervura, transborda e quanto mais se canta, maior é o esplendor das vozes impregnadas na mítica que o próprio cante produz.
É a alma de um povo derramada em sonoridades que escorrem numa cadência de preceitos, como fio de água que passa eterno no mesmo serpentear da corrente. E não cansa fazê-lo nem dá tédio observá-lo, porque embora aparente monotonia, os modos como arrastam as palavras têm o sortilégio de produzir em cada instante sensações diversas, sentires distintos em momentos que são sempre outros.
As modas que são poemas enfeitados de melodia, repetem-se com o mesmo fervor com que os aflitos renovam as preces, uma, duas, vezes sem conto, sempre sem desânimo, buscando uma satisfação inconfessada ou tentando alcançar a perfeição do cântico, para igualar na afinação a interpretação que no imaginário se guarda.
Há um que começa lançando para o ar dizeres já sabidos envoltos numa toada que todos conhecem e os mais, ficam expectantes, agarrados ao chão à espera que da sua vez, totalmente entregues ao apelo e fazem em silêncio o percurso do evoluir ondulante da voz do ponto. A meio, como que param a respiração, depois cresce-lhes um frenesim que aguça ainda mais a necessidade da sua expressão vocal e inspiram, sustêm o fôlego como se fossem mergulhar no vazio, como que aguardando um sinal para entrarem. De rompante, solta-se a voz do alto, mais fininha, estridente, fazendo a chamada. É então que o coro desata as gargantas e os vozeirões dos baixos respondem despejando em tom grave o continuar da moda. E fazem-no com a determinação, a convicção, a postura e o sentir de quem toca o absoluto.
Casam-se tão bem as vozes que o cante parece nascer de uma só vontade, jorrar de uma só garganta, num brado talhado de pausas e preceitos, ornado com melismas, que penetra, arrepia e chega a ser comovente.
Os intérpretes entregam-se completamente à toada de cante que depressa se apodera deles, tornando-os maleáveis, moldando-os a uma plástica donde só sobressai a forma imprimida pelo conjunto. Gera-se entre eles uma corrente de afecto que os percorre e carrega de prazer, germina no grupo um sentir quase lascivo e por isso ficam brandos, capazes de gesto eivados de ternura. Apetece-lhes colarem os corpos tal como sobrepõem as vozes e assim balançam levados e trazidos pela melopeia e cadenciando enleiam os braços, como fazem as silvas para prender em redor.
E sempre que o destino os empurra para a lonjura que é sempre imensa qualquer que seja a distância que os separa do berço, quando estão ausentes, perdidos nos descaminhos, desviados do sítio, afastados desta luz, o crenço agiganta-se e as afinidades com os traços comuns são então mais evidentes.
Buscam a identidade no falar, nos dizeres, nas lembranças, nas coisas que se contam carregadas de sentires fortes de que os outros, seus iguais, também comungam. São as lembranças da escola, as belhoretas de gaito, as brincadeiras de pequeno, e os velhos, a memória da gente ida é também trazida ao de cima, com referências aos sue modos, aos seus hábitos, a histórias reveladoras de um tipicismo que sabe bem recordar.
Por isso se juntam amiúde, de propósito, por necessidade.
Em cima da mesa colocam-se os comeres e as lembranças que se petiscam em cumplicidade e se saboreiam com o paladar da nostalgia. E por fim canta-se sempre.
A moda exulta os espíritos, suaviza a dor da partida, funciona como bálsamo que sem curar, alivia as queixas.
Amorna as mágoas porque este cante é para isso mesmo. Não nasce das alegrias mas brota das paixões, dum pensar profundo, de preocupações. Por isso constrange quando se interpreta, por essa razão arrepia quando nos envolve.
Tem uma espiritualidade evidente qualquer que seja a sua raiz. Cantochão, gregoriano ou fá-bordão poderão estar na sua génese mas a moda tem certamente impregnadas na sua estrutura as marcas de um povo com certo sentir, os sons e as falas, os gestos e os sonhos duma gente antiga que aqui moirejava. E o cante temperou-se nas fornalhas dos restolhos, aveludou-se em primaveras coloridas, absorveu a imensidão do horizonte, captou os gemidos da solidão, ganhou formas próprias em lavouras custosas. Desse caldo de valores e referências se fez o cante e neste ambiente nasceram os mestres, seus intérpretes ímpares seus cultores maiores.
As bocas vão ficando mais escancaradas à medida que o sentimento incha nos peitos, notam-se então os corpos possessos duma magia que transparece nas vaias, crispam-se as mãos e os olhos cerram-se, a inspiração acende-se, o deleite aumenta, abre fervura, transborda e quanto mais se canta, maior é o esplendor das vozes impregnadas na mítica que o próprio cante produz.
É a alma de um povo derramada em sonoridades que escorrem numa cadência de preceitos, como fio de água que passa eterno no mesmo serpentear da corrente. E não cansa fazê-lo nem dá tédio observá-lo, porque embora aparente monotonia, os modos como arrastam as palavras têm o sortilégio de produzir em cada instante sensações diversas, sentires distintos em momentos que são sempre outros.
As modas que são poemas enfeitados de melodia, repetem-se com o mesmo fervor com que os aflitos renovam as preces, uma, duas, vezes sem conto, sempre sem desânimo, buscando uma satisfação inconfessada ou tentando alcançar a perfeição do cântico, para igualar na afinação a interpretação que no imaginário se guarda.
Há um que começa lançando para o ar dizeres já sabidos envoltos numa toada que todos conhecem e os mais, ficam expectantes, agarrados ao chão à espera que da sua vez, totalmente entregues ao apelo e fazem em silêncio o percurso do evoluir ondulante da voz do ponto. A meio, como que param a respiração, depois cresce-lhes um frenesim que aguça ainda mais a necessidade da sua expressão vocal e inspiram, sustêm o fôlego como se fossem mergulhar no vazio, como que aguardando um sinal para entrarem. De rompante, solta-se a voz do alto, mais fininha, estridente, fazendo a chamada. É então que o coro desata as gargantas e os vozeirões dos baixos respondem despejando em tom grave o continuar da moda. E fazem-no com a determinação, a convicção, a postura e o sentir de quem toca o absoluto.
Casam-se tão bem as vozes que o cante parece nascer de uma só vontade, jorrar de uma só garganta, num brado talhado de pausas e preceitos, ornado com melismas, que penetra, arrepia e chega a ser comovente.
Os intérpretes entregam-se completamente à toada de cante que depressa se apodera deles, tornando-os maleáveis, moldando-os a uma plástica donde só sobressai a forma imprimida pelo conjunto. Gera-se entre eles uma corrente de afecto que os percorre e carrega de prazer, germina no grupo um sentir quase lascivo e por isso ficam brandos, capazes de gesto eivados de ternura. Apetece-lhes colarem os corpos tal como sobrepõem as vozes e assim balançam levados e trazidos pela melopeia e cadenciando enleiam os braços, como fazem as silvas para prender em redor.
E sempre que o destino os empurra para a lonjura que é sempre imensa qualquer que seja a distância que os separa do berço, quando estão ausentes, perdidos nos descaminhos, desviados do sítio, afastados desta luz, o crenço agiganta-se e as afinidades com os traços comuns são então mais evidentes.
Buscam a identidade no falar, nos dizeres, nas lembranças, nas coisas que se contam carregadas de sentires fortes de que os outros, seus iguais, também comungam. São as lembranças da escola, as belhoretas de gaito, as brincadeiras de pequeno, e os velhos, a memória da gente ida é também trazida ao de cima, com referências aos sue modos, aos seus hábitos, a histórias reveladoras de um tipicismo que sabe bem recordar.
Por isso se juntam amiúde, de propósito, por necessidade.
Em cima da mesa colocam-se os comeres e as lembranças que se petiscam em cumplicidade e se saboreiam com o paladar da nostalgia. E por fim canta-se sempre.
A moda exulta os espíritos, suaviza a dor da partida, funciona como bálsamo que sem curar, alivia as queixas.
Amorna as mágoas porque este cante é para isso mesmo. Não nasce das alegrias mas brota das paixões, dum pensar profundo, de preocupações. Por isso constrange quando se interpreta, por essa razão arrepia quando nos envolve.
Tem uma espiritualidade evidente qualquer que seja a sua raiz. Cantochão, gregoriano ou fá-bordão poderão estar na sua génese mas a moda tem certamente impregnadas na sua estrutura as marcas de um povo com certo sentir, os sons e as falas, os gestos e os sonhos duma gente antiga que aqui moirejava. E o cante temperou-se nas fornalhas dos restolhos, aveludou-se em primaveras coloridas, absorveu a imensidão do horizonte, captou os gemidos da solidão, ganhou formas próprias em lavouras custosas. Desse caldo de valores e referências se fez o cante e neste ambiente nasceram os mestres, seus intérpretes ímpares seus cultores maiores.
José Francisco Colaço Guerreiro
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