Porém, à última hora, não sei que sentimento inibidor me detém a intenção e não o tenho feito.
Hoje, porém, decidi-me.
É uma história de vida. De vidas tristes.
Onde perpassa a miséria e a frustração, mas, também plena da luz que irradia de sentimentos fortes como a bondade e a delicadeza de alma.
É uma história de verdade.
Foi-me contada em condições especiais.
Certa noite, numa cozinha grande, escura e inóspita, uma garota com as mãos cheias de frieiras, entrapava dolorosamente os dedos para lavar com menos sofrimento (se possível) tachos e panelas numa barrela de cinza e potassa.
Sem saber muito bem como afastar a garota do suplício sem criar atritos com os patrões da rapariga – ausentes na circunstância – inquiri:
-- A Água está quente?
-- Muito quente! – Foi a resposta
-- Tenho as mãos geladas – insisti – deixas-me lavar essa louça para as aquecer?
A rapariguita olhou-me nos olhos e sem dizer palavra afastou-se dos alguidares cedendo o posto à visita da casa e foi sentar-se observando a cena.
Então, volvidos alguns momentos com uma voz decidida, anunciou, sem aparente emoção:
-- Vou-lhe contar a estória de ti Ana das migas.
Manifestando, assim, secamente o seu propósito – começou:
-- A gente morava numa barraca lá no Olival
-- A gente criava gado.
-- O porco amanheceu com mal.
-- O mê padrasto disse à nha mãe pró trazer ó alveitar.
-- A nha mãe disse: - atão e o mocinho?
-- Que o mê irmanito andava com fevres.
-- Moços é o ca gente faz mais depressa – disse ele – e o porco custa denhêro.
-- A nha mãe veio para a cidade com o porco.
-- O mê padrasto foi précurar trabalho.
-- E cá fiquei a coidar do mê irmanito e do mê burro.
-- Desatou, atão, a chover. Pracia que o céu desabava desfeito em água.
-- Ospois vieram-nos os trovões.
-- O burro assustou-se, soltou-se a fugiu.
-- A gente teve medo de apanhar porrada por mor do burro e abalamos debaixo de água a ver se o agarrávamos
-- Fazia escuro, pracia noite e a gente já nâ sabia por dende haveramos de ir.
-- A gente perdemos e começamos a chorar alto e a bradar.
-- A ti Ana das migas óviu a gente e veio ver.
-- Dêtou o xaile por cima da gente e levou a gente prá barraca dela.
-- Mandou a gente assentar-se ao lume pra enxugar e disse assim:
-- Nã chorem qué faço umas miguinhas e uma penguinha de café e voceis aquecem.
-- Chamavam-lhe Ti Ana das Migas porque ela adorava migas.
-- Ela fritou os alhos, no lume de chão, fez o comeri e o caféi e deu à genti.
-- A mim deu-me os alhos fritos todos e, ê cá comi-os.
-- Amargavam!!
-- Então, se não gostas porque comeste - interferi com ar quase de malícia e os olhos húmidos de terna compreensão e bondade a garota disse com sinceridade.
-- Ela deu-me o quela mais gostava!
Um silêncio incómodo pairou na lúgubre cozinha após o relato.
A loiça já estava lavada.
A chuva que provocara a visita – havia cessado.
Sentia o rosto em chamas.
O coração batia-me descompassado.
Não sabia se havia de rir ou de chorar.
Qualquer sentimento me parecia legítimo.
Sabia que beirara fundo a beleza duma alma de criança com uma experiencia tão grande de sofrimento que se tornara sábia no entendimento das pessoas.
Tão sábia que respeitava o pudor da alma dos outros e da sua própria.
Andando à toa pela rua, percebi que acima de tudo sentia medo.
Medo, vergonha, revolta, desespero e raiva por não saber onde encontrar as mãos que é preciso estender às crianças que choram perdidas, à luz dos relâmpagos, e ao som dos trovões, pelos caminhos enlameados pelas tempestades – que colhem – sem que as tenham semeado.
Maria José Rijo
Conversas Soltas
Nº 2.328 – 8 de Dezembro de 1995
Jornal Linhas de Elvas
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