Em Alcácer do Sal, conta-se a lenda de uma bela moura encantada. Os velhos dizem que em certas noites de luar, encostados aos muros do antigo castelo, ainda podemos ouvir a triste Almira suspirar, cantando, pelo seu D. Gonçalo...
Conta a lenda que, quando Afonso II conseguiu penetrar em Alcácer, os mouros fugiram apavorados ante a sanha dos cristãos. Naquela precipitação, uns atiraram-se das torres, outros fugiram de roldão pelas portas escancaradas e alguns utilizaram antigos subterrâneos só deles conhecidos. Na debandada geral, porém, uma menina ficou esquecida, ou, quem sabe, seus pais terão perecido. Mal falava, ainda. Sabia que se chamava Almira, mas pouco mais conseguia dizer. Às perguntas que lhe faziam, esbugalhava os olhitos negros, sem compreender por que razão não estava ali a mãe ou a ama. E, de repente, virava-se de costas para aquela gente que a interrogava, escondia a cara nas mãos e soluçava baixinho, sacudindo levemente os cabelos negros de noite como um manto de veludo.
Almira foi recolhida no castelo e criada como cristã. Parecia ter esquecido a sua ascendência e provavelmente esqueceu-a, porque ninguém lha lembrava. Foi crescendo rodeada de amor e, como era dotada para a música, aprendeu alaúde, que tocava como mais ninguém. O seu espírito irrequieto e sonhador pregou-lhe a partida de a fazer poetisa. E assim, com o alaúde e a sua poesia, rivalizava com qualquer trovador que pousasse no castelo, tirando sempre a vantagem do esquisito sentir que a tornava diferente. Havia nela uma tristeza ausente, feita de saudades do que não lembrava mas amava. E essa tristeza ausente fazia do seu corpo, espiga dourada, um desejo doloroso de quantos cavaleiros por ali passassem. E Almira deixava-os ir e vir. Observava os seus feitos guerreiros com um sorriso gentil. Honrava-os nos seus poemas, mas continuava sentada no seu trono invisível, sorrindo um sorriso longínquo, intocável, sempre. Até que um dia D. Gonçalo chegou a Alcácer do Sal.
Como qualquer outro cavaleiro, chegou em busca de honra e serviço. E como qualquer outro, também, veio para conhecer Almira e o seu sorriso. D. Gonçalo era assim, nem bonito nem feio. Tinha olhos, uns olhos tais que Almira desapareceu dos salões e nunca mais voltou a sorrir a ninguém do divã onde se sentava cantando tristezas ausentes. Uma dor estranha instalara-se como uma rosa desabrochando eternamente no seu corpo, na sua alma, em si inteira. Encostada ao parapeito da sua torre, Almira soltava no ar gritos de amor em cânticos melodiosos:
Pois é mais vosso que meu,
Senhor, o meu coração
Pois vossos cativos são
Meus olhos, lembro-vos eu.
Lembro-vos minha tristeza,
Que jamais nunca me deixa,
Lembro-vos com quanta queixa
Se queixa minha firmeza.
Lembro-vos que não é meu
O meu triste coração
Pois tendes tanta razão,
Meus olhos, lembro-vos eu.
D. Gonçalo ouvia, mas não se atrevia. Bem sabia D. Gonçalo que aqueles "meus olhos" eram seus. Até que, uma noite, D. Gonçalo ouviu e atreveu-se. Almira tocava alaúde baixinho, quase em surdina, como um suspiro interior. O cavaleiro, encostado às ameias do terraço da torre, ergueu timidamente a voz e os olhos, e cantou:
Mais digna de ser servida
Que senhora deste mundo,
Vós sois o meu deus segundo
Vós sois meu bem desta vida.
Vós sois aquela que amo
Por vosso merecimento,
Com tanto contentamento
Que por vós a mim desamo.
A vós só é mais devida
Lealdade neste mundo
Pois sois o meu deus segundo
E meu prazer desta vida.
Almira ouviu. Sentiu a vida fugir-lhe por um instante sem tempo. Depois, quando conseguiu voltar a si, endireitou seu corpo de espiga, olhou o cavaleiro e, sussurrando como um vento que mal toca a copa das árvores, disse, apenas:
- Oh! Meu senhor D. Gonçalo!
O resto não conta a lenda, mas diz quem sabe que, em certas noites de luar de Agosto, se ouve os sussurros dos dois amantes, que eternamente se quiseram encantados nas muralhas da velha Salacia Romana.
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