Dia Internacional do Idoso: 01OUT
(carta de um velho ao mundo)
Quando leres estas palavras provavelmente já terei morrido. É tão simples perceber a inutilidade das palavras quando “morte” tem apenas cinco letras e acaba com tudo. O que deixo para trás não sei dizer. Deixo a certeza de que fiquei sempre aquém do que pude ser. Fui sempre quase o que quis ser, e provavelmente foi isso, apenas isso, o que realmente desejei ser.
À vida nunca pedi muito e ela deu-me tanto. Quando era pequeno acreditava no Pai Natal, na felicidade eterna, nos casais que ficavam juntos para sempre. Hoje acredito ainda mais. As rugas tiram muita coisa mas nunca tiram o amor, se um dia tiveres dúvidas sobre o que realmente importa na vida pensa nisso e chegarás a uma conclusão. Se ficar algo de mim neste mundo será o amor que dei e recebi, nada mais.
Por vezes custa estar vivo. Muitas vezes parece que não há saída, que o que dói nunca vai parar de doer. Mas passa. Passa sempre. Fica um pedacinho que nos impede, aqui e ali, alguns movimentos. Mas o que nos bloqueia passa sempre. Haja uma mulher para amar e o mundo continua. A minha mulher é o que a vida me deu, e foi ela que me deu tudo o que a vida me deu.
Nunca lamentei as lágrimas que chorei, os acidentes que me fizeram recomeçar. O tempo serve para recomeçar, pouco mais. A mudança é o que me mantém vivo, tenho vindo a aprender. A cabeça já não é o que era, o corpo já não é o que era, deve ser a isso que chamam velhice, eu sei. Há um corpo que cai e nós cá por dentro sempre a levantar-nos, sempre mais altos. A idade eleva-nos tudo menos o corpo. Tudo cede menos o que amamos. O que profundamente amamos.
Amo profundamente quem me faz rir. O senhor das piadas da televisão, Deus o guarde, a senhora do talho e os seus palavrões que nem me atrevo a pensar, e os que amo. Amar é rir profundamente.
Já me amputaram de pessoas. A morte de quem faz parte do nosso mundo é um pedaço que se vai. Estou com muito menos do que aquilo que já tive mas ainda consigo andar. Viver é mais do que tudo conseguir arranjar membros suficientes para, por mais amputações que a vida nos traga, nos conseguirmos mexer.
Faltam-me poucos dias por aqui, isso é certo. Tento não os contar, passar por eles sem me lembrar do que falta. Acredito que ainda me vou cruzar com a euforia algumas vezes, por mais que as doenças apertem e a incapacidade triture. Sou uma máquina de luta contra a insuficiência. Agarro-me ao toque da minha mulher como se me agarrasse ao que me impede de morrer. E nunca morro.
No fundo, como te dizia no começo destas linhas que já vão longas (os velhos têm esta mania de falar demais, de contar demais, de saberem demais, mas ninguém quer saber dos velhos até que chega a velho e aí são os outros que não querem saber de quem não quer saber dos velhos, mas eu não me incomodo, a lei da vida é também a lei da morte, fiquei a saber há muito), quando leres estas palavras provavelmente já terei morrido. Mas tu não. Tenta fazer disso uma vantagem.
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in "Prometo Perder", o novíssimo livro de Pedro Chagas Freitas.
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(imagem: Lee Jeffries)
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