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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

O Alentejo ( Miguel Torga )






 




O Alentejo, por Miguel Torga
Em Portugal, há duas coisas grandes, pela força e pelo tamanho: Trás-os-Montes e o Alentejo. Trás-os-Montes é o ímpeto, a convulsão; o Alentejo, o fôlego, a extensão do alento. Províncias irmãs pela semelhança de certos traços humanos e telúricos, a transtagana, se não é mais bela, tem uma serenidade mais criadora. Os espasmos irreprimíveis da outra, demasiado instintivos e afirmativos, não lhe permitem uma meditação construtiva e harmoniosa. E compreende-se que fosse do seio da imensa planura alentejana que nascesse a fé e a esperança num destino nacional do tamanho do mundo. Só daquelas ondas de barro, que se sucedem sem naufrágios e sem abismos, se poderia partir com confiança para as verdadeiras. Enquanto a nação andava esquiva pelas serras, ninguém se atreveu a visionar horizontes para lá da primeira encosta. Mas, passado o Tejo, a grei foi afeiçoando os olhos à grande luz das distâncias, e D. Manuel pôde receber ali a notícia da chegada de Vasco da Gama à Índia.
Terra da nossa promissão, da exígua promissão de sete sementes, o Alentejo é na verdade o máximo e o mínimo a que podemos aspirar: o descampado dum sonho infinito, e a realidade dum solo exausto.
Há quem se canse de percorrer as estradas intermináveis e lisas desse latifúndio sem relevos. Há quem adormeça de tédio a olhar a uniformidade da sua paisagem, que no inverno se veste dum pelico castanho, e no verão duma croça madura. Que é parda mesmo quando o trigo desponta, e loura mesmo quando o ceifaram. Queixam-se da melancolia dos estevais negros e peganhosos, que meditam a sua corola branca um ano inteiro, da semelhança aflitiva das azinheiras, que parecem medidas pelo mesmo estalão, e não distinguem nos rebanhos que encontram, quer de ovelhas, quer de porcos, as particularidades que individualizam todo o ser vivo. Afeitos à variedade do Norte, que até aos bichos domésticos consente cara própria e personalidade, aflige-os a constante do Sul, que obriga todo o circunstancial a ocupar o seu lugar de zero diante do infinito. Perdidos e sós no grande descampado, sentem-se desamparados e vulneráveis como crianças. Amedronta-os a solidão de uma natureza que não se esconde por detrás de nenhum acidente, corajosa da sua nudez limpa e total.
Eu, porém, não navego nas águas desses desiludidos. A percorrer o Alentejo, nem me fatigo, nem cabeceio de sono, nem me torno hipocondríaco. Cruzo a região de lés a lés, num deslumbramento de revelação. Tenho sempre onde consolar os sentidos, mesmo sem recorrer aos lugares selectos dos guias. Sem necessitar de ir ver o tempo aprisionado nos muros de Monsaraz, de subir a Marvão, que me lembra um mastro de prendas erguido num terreiro festivo, de passar por Água de Peixes, que é um albergue de frescura e de beleza na torreira dum caminho, ou de visitar a Sempre-Noiva, onde há perpètuamente um perfume de flores de laranjeira a sair do rendilhado das janelas manuelinas. Embriago-me na pura charneca rasa, encontrando encantos particulares nessa pseudo-monotonia rica de segredos. Nada me emociona tanto como um oceano de terra estreme, austero e viril. A palmilhar aqueles montados desmedidos, sinto-me mais perto de Portugal do que no castelo de Guimarães. Tenho a sensação de conquistar a pátria de novo, e de a merecer. O chão das outras províncias já se não vê, ou porque vive coberto pela verdura doméstica de oito séculos, ou porque a erosão levou toda a carne do corpo e deixou apenas os ossos. Mas a terra alentejana pode contemplar-se ainda no estado original, virgem, exposta e aberta. E é nela que encho a alma e afundo os pés, num encontro da raiz com o húmus da origem. Abraço numa ternura primária as léguas e léguas duma argila que permanece disponível mesmo quando tudo parece semeado. O corpo, ali, pode ainda tocar o barro de que Deus o criou.
Mais do que fruir a directa emoção dum lúdico passeio, quem percorre o Alentejo tem de meditar. E ir explicando aos olhos a significação profunda do que vê. Porque cada propriedade se mede por hectares, são em redil os aglomerados, respeitosos da extensão imensa que os circunda, e um suíno, ou relegado à sua malhada, ou a comer bolota no montado, não faz parte da família, – é que o alentejano pôde guardar a sua personalidade. E talvez nada haja de mais expressivo do que esse limite nítido entre a intimidade do homem e a integridade do ambiente. Assegura-se dessa maneira a conservação duma dignidade que o bípede não deve alienar, nem a paisagem perder. Se há marca que enobreça o semelhante, é essa intangibilidade que o alentejano conserva e que deve em grande parte ao enquadramento. O meio defendeu-o duma promiscuidade que o atingiria no cerne. Manteve-o vertical e sozinho, para que pudesse ver com nitidez o tamanho da sua sombra no chão. Modelou-o de forma a que nenhuma força, por mais hostil, fosse capaz de lhe roubar a coragem, de lhe perverter o instinto, de lhe enfraquecer a razão. E é das coisas consoladoras que existem contemplar na feira de qualquer cidade alentejana a compostura natural dum abegão, ou vê-lo passar ao entardecer, numa estrada, com o perfil projectado no horizonte, dentro do seu carro de canudo. É preciso ter uma grande dignidade humana, uma certeza em si muito profunda, para usar uma casaca de pele de ovelha com o garbo dum embaixador.
Foi a terra alentejana que fez o homem alentejano, e eu quero-lhe por isso. Porque o não degradou, proibindo-o de falar com alguém de chapéu na mão.
Mas não são apenas essas subtis razões éticas e geográficas que me fazem gostar do Alentejo. Amo também nele os frutos palpáveis duma harmonia feliz entre o barro e o oleiro. Amo igualmente o que o homem fez e a terra deixou fazer. Diante de um tapete de Arraiolos, ou a ouvir uma canção a um rancho de Serpa, implico o habitante e o habitado no mesmo processo criador, e louvo-os no mesmíssimo entusiasmo. Não há arte onde o homem não é livre e a natureza não quer. Dando às mãos ágeis e fantasistas materiais nobres e moldáveis – o mármore, o cobre, a lã, o coiro, e o barro –, a terra alentejana quis que a vida no seu corpo tivesse beleza. E de Norte a Sul, desde as campanhas da Idanha, que já lhe pertencem, às figueiras algarvias, os seus montes, as suas aldeias, as suas vilas e as suas cidades são marcados por um selo de imaginação e de graça. Aqui uma varanda onde um ferreiro fez renda, acolá um pátio onde um pedreiro inventou uma nova geometria, além uma oficina onde um caldeireiro fabrica ânforas esbeltas e vermelhas como cachopas afogueadas. Aproveitando os incentivos do meio e os recursos do seu génio, o alentejano faz milagres. A própria paisagem sem relevo o estimula. Faltava ali o desenho e a arquitectura, que nas outras províncias existem na própria natureza. Pois bem: concebeu ele o desenho e a arquitectura. E, na mais rasa das planícies, ergueu essa flor de pedra e de luz que é Évora!
Beja tem a sua torre de mármore, com uma tribuna para ver meio Portugal; Portalegre os seus palácios barrocos, para encher de solidão; Elvas o seu aqueduto de sede arqueada e a sua feiura para meter medo aos Espanhóis; Estremoz a sua praça do tamanho de uma herdade. Mas Évora olha os horizontes do alto do seu zimbório espelhado, povoa as casas de lembranças vivas e gloriosas, e, sequiosa apenas do eterno, risonha e aconchegada, enfrenta as agressões do transitório com a força da beleza e a amplidão do espírito.
Será talvez alucinação de poeta. Mas porque nela se documenta inteiramente a génese do que somos, o que temos de lusitanos, de latinos, de árabes e de cristãos, e se encontra registado dentro dos seus muros o caminho saibroso da nossa cultura, – se estivesse nas minhas mãos, obrigava todo o português a fazer uma quarentena ali. Uma lei pública devia forçá-lo a entrar na cidade a desoras, numa noite de luar. E, sem guia, manda-lo deambular ao acaso. Seria um filme maravilhoso da história pátria que se lhe faria ver, com grandes planos, ângulos imprevistos, sombras e sobreposições. Uma retrospectiva completa do que fizemos de melhor e mais puro no intelectual, no político e no artístico. Só de manhã seria dado ao peregrino confirmar com a luz do sol a luz do écran. E se ao cabo da prova não tivesse sentido que num templo de colunas coríntias se pode acreditar em Diana, numa Sé românica se pode acreditar em Cristo, e num varandim de mármore se pode acreditar no amor, seria desterrado.
Compreender não é procurar no que nos é estranho a nossa projecção ou a projecção dos nossos desejos. É explicar o que se nos opõe, valorizar o que até aí não tinha valor dentro de nós. O diverso, o inesperado, o antagónico, é que são a pedra de toque dum acto de entendimento. Ora o Alentejo é esse diverso, esse inesperado, esse antagónico. Tudo nele é novo e bizarro para quem o visita. Os arcos, as silharias, as abóbadas e os coruchéus das suas casas; a açorda de coentro e o gaspacho de alho e vinagre das suas refeições; as insofridas parelhas de mulas guisalheiras a martelar as calçadas ao amanhecer; as pavanas cinegéticas que oferece aos convidados; os magustos de bolota; os safões dos homens e o chapéu braguês das mulheres – são ferroadas no nosso cotidiano. Mas o que tem interesse é precisamente revelar aos olhos, ao paladar e aos ouvidos a novidade dessas descobertas. Mostrar-lhes a originalidade de uma vida que se passa ao nosso lado, e tem o inesperado de uma aventura. E mostrar-lho carinhosamente! Sem espírito de simpatia, tudo se amesquinha e diminui. E coisas grandes, como uma semeada ou uma ceifa no Redondo, podem ser reduzidas à pequenez duma vessada ou duma segada beiroa.
Quem vai ao mar, prepara-se em terra – diz o ditado. Aplicando a fórmula ao Alentejo, teremos de nos preparar para entrar dentro dele. Será preciso quebrar primeiro a nossa luneta de horizontes pequenos, e alargar, depois, o compasso com que habitualmente medimos o tamanho do que nos circunda. Agora as distâncias são intermináveis, e as estrelas, no alto, brilham com fulgor tropical. Teremos, portanto, de mudar de ritmo e de visor.
O Alentejo, visitado por alguém que leve consigo a capacidade emotiva e compreensiva de um verdadeiro curioso, é um Sésamo que se abre. As suas fainas, os seus costumes, as mutações impressionantes do seu rosto quando tem frio ou quando tem calor, os seus trajes e a sua própria fala – são outros tantos motivos de meditação e admiração. Mas o que nele é sobretudo extraordinário e a sua inflexível determinação de conservar uma fisionomia inconfundível, haja o que houver. Pode-se preferir uma região mais maneira ou mais angustiada, e uma gente menos soberba, mais autênticamente humana, e mais sinceramente generosa. Herdades mais à medida dos pés, cultivadas por semelhantes sem o ar de fidalgos a gozar férias rurais. Mas não se pode negar a evidência duma terra que merece como nenhuma este nome maternal e austero, e muito menos a dos filhos altivos e afirmativos que dá, imaginários como poetas e duros como azinhos. Cepa e rebentos de tal modo unidos e conjugados, que formam como que um só corpo e um só espírito. Um corpo hipertrofiado, que hipertrofia o espírito por indução.
O alentejano que sobe ao alto do castelo de Évora-Monte, erguido ali ao lado da térrea casinha da Convenção onde a concórdia da família portuguesa foi assinada, ele que tem o sangue de Giraldo-sem-Pavor a correr-lhe nas veias, que assistiu às façanhas e às hesitações do Condestável, e que fez parte da insurreição do Manuelinho, sente naturalmente dentro de si o irreprimível orgulho dum homem predestinado. A seus pés desdobra-se o extenso palco do seu destino: a infindável planície a que dá vida e movimento. São os rios e os ribeiros secos que faz transbordar de suor, os negros montados que alegra de vez em quando pintando de vermelho cada sobreiro, a sua casinha escarolada e erma com uma mimosa na botoeira, e as searas que ondulam e reverberam num aceno de abundância. Um mundo livre, sem muros, que deixou passar todas as invasões e permaneceu inviolado, alheio às mutações da história e fiel ao esforço que o granjeia. Nenhum limite no espaço e no tempo. Seja qual for o ponto cardial que escolha a inquietação, terá sempre o infinito diante de si, em pousio para qualquer sementeira. E essa eterna pureza e disponibilidade do solo exaltam o ânimo do possuidor.
Sim, pobre ganhão que seja, ele é um rei nos seus domínios. Não há outro português mais rico de pão, agasalhado por tão quente manta de céu e dono de tantos palmos de sepultura. Que minhoto ou estremenho se pode gabar de ver sempre o vulto dum seu irmão, que não tem medo da imensidade, a abrir um risco de fogo e de esperança com a ponta da charrua?
Miguel Torga

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

National Park Guide

Enjoy some of the wonderful birds of prey found in the 58 European national parks, that is described in the guidebook “National Park Guide, Europe”.
We look forward to you commenting and suggesting which birds of prey are in the various photos.
NB! In our guidebook, there is a comprehensive index, so you can find out, where you can expect to find every bird of prey in these national parks. AND – also everything else – like flowers, trees, insects, habitats etc. It was a lot of work to prepare this index. We hope that you will enjoy it greatly if you buy our book.
You can buy it from our website:
and if you live in Europe, the delivery is free.
If you live in England (and elsewhere of course), you can also buy it from our business-partner here:











 Desfrute de algumas das maravilhosas aves de rapina encontradas nos 58 parques nacionais europeus, que está descrito no guia “National Park Guide, Europe”.

Esperamos que comente e sugira quais aves de rapina estão nas várias fotos.

No nosso guia, existe um índice abrangente, para que possa descobrir, onde pode esperar encontrar todas as aves de rapina nestes parques nacionais. E também tudo o resto, como flores, árvores, insetos, habitats etc. 

Deu muito trabalho preparar esse índice. 

Esperamos que goste muito se comprar o nosso livro.

Você pode comprar no site:

https://www.nationalparkguide.com/

E, se você mora na Europa, a entrega é grátis.

Se vive em Inglaterra (e noutros lugares, é claro), também pode comprá-lo ao nosso parceiro de negócios aqui:

https://www.nhbs.com/the-national-park-guide-europe-book

domingo, 18 de setembro de 2022

Guias TransAlentejo



 GUIAS TRANSALENTEJO para si !

Pode descarregar todos Guias TransAlentejo, incluindo as Rotas TransFronteiriças com a Extremadura Espanhola, sem qualquer problema ou dificuldade a partir do site do TransAlentejo Walking Festival 2022.
Já não tem desculpa para não ir caminhar.
Aceda a este link: https://bit.ly/3QYncwV
Os Guias TransAlentejo são uma edição da Turismo do Alentejo ERT (2015 e 2021) com autoria dos Percursos Pedestres dos 47 Municípios do Alentejo. Coordenação Técnica: SAL Sistemas de Ar Livre. Autor dos Textos: José Pedro Calheiros
Fotografias: SAL e Direitos Reservados. 
Base Cartográfica: Centro de Informação Geoespacial do Exército. 
Impressão: InfoPotugal. 
Traduções: Inpokulis. Estes guias são de acesso e utilização gratuita. 
Todos os direitos são reservados dos autores e editores.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Andar a Pé...


 QUALQUER PESSOA QUE AME A NATUREZA E GOSTE DE CAMINHAR VAI ADORAR ESTE LIVRO

A vida reside no lado selvagem. O mais vivo é o mais selvagem. O que ainda não se subjugou ao homem, a terra retempera-o. Aquele que avança em frente incessantemente, nunca descansando das tarefas, se desenvolve depressa e exige infinitamente à vida, irá sempre encontrar-se num novo país ou no meio selvagem, rodeado da matéria-prima da vida.
É como se se transpusesse os troncos das árvores derrubadas das florestas primitivas. Esperança e futuro não estão nos relvados ou nos campos cultivados, nem nas vilas ou cidades, mas nos pântanos impermeáveis e instáveis. É preciso caminhar e prestar atenção, não é preciso ir muito longe. Afinal, o essencial da condição humana reside na simplicidade e não no acumular persistente de coisas.
Andar a Pé é um dos mais belos textos de Thoreau. Expõe a sua filosofia de vida e estabelece a arte de caminhar como a forma mais intensa de despertar os sentidos e a alma humana. Um verdadeiro hino de amor à natureza profunda e original, um manifesto pela liberdade que foi escrito muito para lá do seu tempo.
«Quem diria que a liberdade é a realidade, e que as leis e os compromissos são a ficção? Quem diria, nesta vida de corrida e competição, que os nossos músculos em andamento desenvencilham as correntes onde cada um se deixou enrodilhar por não exercer o seu lado selvagem? Quem e por que razão se deixou apartar tanto da natureza ao ponto de já não se considerar um torrão dela?»
Raquel Ochoa, Tradução e Prefácio
O AUTOR
Henry David Thoreau (Concord, Massachusetts, 1817-1862) foi um ensaísta, poeta, conferencista e naturalista americano. Apaixonado pela natureza, ao longo da vida, dedicou longas horas por dia a observar e a refletir sobre a flora e a fauna da sua região.
Desejoso de se afastar da sociedade e mergulhar na natureza, construiu uma cabana, onde morou sozinho durante dois anos. A obra Walden, A Vida nos Bosques, publicada em 1854, narra a sua vida na floresta de Concord. Desobediência civil, um ensaio também destilado da sua experiência, surgiu em 1849, numa noite que passou na prisão em protesto contra uma guerra injusta e a escravatura.
Os seus livros, artigos, ensaios, periódicos e poesia estão reunidos em mais de vinte volumes. O seu estilo literário entrelaça observação atenta da natureza, experiência pessoal, retórica precisa, significados simbólicos e tradição histórica, enquanto exibe uma sensibilidade poética, austeridade filosófica e atenção aos pormenores práticos.
Estava profundamente interessado na ideia de sobrevivência, da mudança histórica e da decadência natural; ao mesmo tempo, defendia o abandono do desperdício e da ilusão, para descobrir as verdadeiras necessidades da vida.
O pensamento de Thoreau permeou a vida americana e espalhou-se pelo mundo. Influenciou alguns opositores pacíficos, como, por exemplo, Martin Luther King, Jr., Liev Tolstói e Mahatma Gandhi.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Açordas ou Sopas de Pão...


 AÇORDAS OU SOPAS DE PÃO

Para muitos alentejanos, açordas e sopas de pão são uma e a mesma coisa. Aprendemos que a palavra açorda radica no árabe “ath-thurda” e que designa um cozinhado de pão embebido num caldo bem quente. Aliás, a palavra caldo pressupõe que a confecção esteja quente, pois radica no latim “caldus”, que significa isso mesmo.
Por outro lado, a palavra sopa, com origem no germânico Suppa, chegou-nos através do francês “soupe” (alimento líquido, geralmente servido no início da refeição). Diga-se, a propósito, que entre nós, a palavra sopa também refere cada um dos pedaços de pão, cortados à faca ou partidos à mão, quer os que já estão embebidos no caldo, quer os que ainda estão em vias de o ser. É neste último contexto que “molhamos a sopa” ou “cortamos as sopas” para a açorda. A verdade é que cada um usa os nomes que aprendeu e de que mais gosta. A culinária não tem regras científicas de sistemática e de nomenclatura a respeitar. Segue, sim, os caminhos da vivência, da imaginação e, também, em certa medida, os da arte, pois não é raro ouvir falar da arte na cozinha. Na literatura portuguesa, o termo açorda surgiu, crê-se que pela primeira vez, na “Farsa dos Almocreves”, de Gil Vicente (c. 1465-c.
1536). Diz ele, aí:
“Tendes uma voz tão gorda / Que parece alifante / Depois de farto de açorda”.
Na douta opinião de Alfredo Saramago (1938-2008) em “Para uma História da Alimentação no Alentejo”, Assírio & Alvim, 1997, a nossa açorda atravessou os cinco séculos de ocupação romana, tendo sido os árabes que, durante outros cinco séculos de presença, a fixaram e lhe deram a importância que teve entre eles e ainda tem entre nós. Vulgarizada entre as famílias alentejanas, não se afasta da “tharid” dos invasores árabes, ganhando raízes nas nossas terras do Sul, “Antre Tejo e Odiana” (entre Tejo e Guadiana). Confecção frugal de pedaços de pão mergulhados num caldo quente, aromatizado com ervas e enriquecido com azeite, a “tharid”, cujo nome alude ao acto de cortar ou arrancar pedaços de pão, terá sido muito elogiada por Maomé (Saramago, 1997). A açorda é, pois, uma herança da presença muçulmana neste “Garb al Andaluz”, dos séculos VII a XIII.
Não há uma, mas muitas receitas de açordas no Alentejo, todas elas com uma característica comum, a de fatias ou pedaços de pão mergulhados (ensopados) num qualquer caldo quente, com mais ou menos gordura. São tantas, a ponto de, em Portel, ter lugar o “Congresso das Açordas”, que em 2017, entre 31 de Março e 7 de Abril, cumpriu o seu 11º encontro. As receitas são muitas e mudam de região para região e, mesmo, de família para família.
Fazer sopas de pão deve ter começado por ser um acto de elementar economia, bem evidente no Alentejo, onde, ao contrário do norte do país, o trigo foi e continua a ser o essencial na componente amilácea dos seus naturais. Fazer sopas de pão foi um expediente engenhoso e fácil de aproveitar integralmente o pão endurecido de muitos dias, onde já se não metia o dente. Só molhado! Amassar e cozer o pão era tarefa, no mínimo, semanal, via de regra ao Sábado e, assim, o pão que durasse até nova amas- sadura, só bem embebido no caldo ou, então, comido à navalha e em lasquinhas bem delgadas.
No Alentejo, o pão de trigo sempre engrossou e deu calorias a uma qualquer frugal confecção caldosa, fazendo dela, muitas vezes, uma refeição completa. Avolumar com pão os magros cozinhados,
numa prática corrente, foi um nunca mais acabar de experiências (migas, ensopados, açordas e outras sopas) em que as mais bem sucedidas estão hoje, convenientemente apresentadas, na mesa de alguns restaurantes que descobriram o seu grande valor em termos de turismo gastronómico, face a uma clientela crescente em procura deste e de outros tipos de bens culturais.
As açordas dos mais carenciados raiavam a frugalidade. Eram as “açordas de mão no bolso”, como já escrevi em “…Com Poejos e Outras Ervas”, (Âncora Editora, 2002) que, não tendo conduto, só precisam da mão que leva a colher à boca. Eram as “açordas peladas, não fazem mal nem bem, é só pão e água... caem nas calças e não põem nódoas”, tal a míngua do azeite, escreveu Falcato Alves, em “Os Comeres dos Ganhões” (Campo de Letras, 1994). Era assim nos campos do Alentejo que conheci no meu tempo de adolescente. Ao invés, as açordas dos que podiam comê-las, tinham grande valor nutritivo e requintado paladar. Convenientemente untadas de bom azeite, eram enriquecidas com bacalhau, pescada cozida, ameijoas, sardinhas assadas ou fritas e ovos cozidos ou escalfados e, até, nalgumas famílias, com figos frescos, no tempo deles.
Com a real melhoria das condições de vida de há pouco mais de quatro décadas para cá, a açorda alentejana evoluiu de alimento de subsistência, muitas vezes em períodos de fome, para um prato de referência. A “sopa alentejana” que se serve em Lisboa é uma pretensa e imperfeita imitação da nossa açorda. Feita com pão de carcaça (papo seco) que, de imediato, a deixa espapaçada, acompanhada de ovo escalfado, é para nós um desconsolo.
Finalista no concurso “7 Maravilhas da Gastronomia Portuguesa”, em 2011, a açorda alentejana corresponde, no essencial, como se disse atrás, à “ath thurda”, em que as ervas aromáticas são o coentro e/ou poejo. À falta destas ervas ou misturado com elas, há quem use pedacinhos de pimento verde bem pisados, havendo, ainda, quem, em vez de coentros ou poejos, a faça com orégãos frescos, acabados de colher.
Ao contrário da maioria das sopas, a açorda alentejana não é, praticamente, cozinhada. Ao lume só vai a água, para ferver ou para cozer o peixe, operação relativamente rápida e, por isso, importante em termos de deixar tempo livre às mães de muitos filhos e “donas de casa”, como era a minha.
No século XIII, no Alentejo, na Extremadura espanhola e na Andaluzia, comiam-se umas sopas de pão, por vezes enriquecidas com carnes de frango ou de borrego, a que se dava o nome de “panadas”, das quais, o gastrónomo, filósofo e poeta de Múrcia, Ibn Razin al-Tujibi (1227-1293), descreveu vinte e cinco receitas. Mais tarde, no século XVII, o cozinheiro da Casa Real de Portugal, Domingos Rodrigues (1637-1719), no seu livro “A Arte de Cozinha”, editado em 1680, diz que “diferentes dos caldos, havia sopas cozinhadas com pão”. Já nesta obra, a palavra sopa também refere cada um dos pedaços de pão, cortados à faca ou partidos à mão, quer os que já estão embebidos no caldo, quer os que ainda estão em vias de o ser. A expressão “sopas de pão” é, pois, uma redundância, mas evita possíveis confusões. Ao dizer sopas (no plural) disto ou daquilo, a minha mãe referia-se a um só prato, se este fosse à base de pão. Era o caso, entre outras, das sopas de cação ou das de beldroegas. Mas se delas não fizesse parte o pão, falava dos diferentes tipos de sopa (no singular), como por exemplo, a sopa de legumes, a sopa de puré de feijão, a canja, o caldo verde o creme de cenouras e muitas outras. Quando, por exemplo, ela dizia “sopa de grão com espinafres”, ficava-se a saber que se tratava de uma confecção caldosa, de puré de grão com os ditos espinafres, para comer à colher, à qual se seguiria um segundo prato de carne ou de peixe. Mas se ela dissesse “sopas de tomate”, isso indicava que a refeição iria ter um único prato (“assarias”, como ainda se dizia em Portel, em começos do século XX) de sopas de pão, acompanhadas com ovos escalfados e com os pedaços da carne e dos enchidos dos quais se havia tirado o pingo necessário à confecção.
À mesa das famílias alentejanas, as sopas de pão são normalmente comidas com colher e garfo. A colher leva à boca e o garfo ajuda, quer no ajeitar do pedaço de pão na dita, quer na divisão dos condutos. É o contrário do que se faz nos pratos de carne ou de peixe, onde é o garfo que leva à boca e é a faca que corta e ajuda.
Para nós, alentejanos, as migas (do latim, mica, que significa migalha, partícula) são um alimento à base de fatias de pão de trigo embebidas em água bem quente e, a seguir, esmigalhadas e amassadas, untadas com o “pingo” de fritar carne de porco ou com azeite. Este tipo de confecção, mas mais espapaçado, é aquele que, em Lisboa e noutras regiões do país, se chama “açorda”. Cozinhadas a partir de múltiplas receitas, variando de lugar para lugar, as “açordas de marisco”, as boas as más, que percorrem o litoral, do Minho ao Algarve, são, na realidade, migas. Dando satisfação a numerosos apreciadores, temos, ainda a “açorda com ovas de sável”, que se faz no Ribatejo, confecção com lugar cimeiro na gastronomia portuguesa. Umas e outras estão mais de acordo com a nossa ideia de migas, incluindo as de batata, também elas esmigalhadas e amassadas.
Consciente desta realidade cultural dos alentejanos, o poeta João de Vasconcelos e Sá, avô do nosso fadista Pinto Basto, cantou, na revista musical, “Palhas e Moinhas”, levada à cena, em 1939, no teatro Garcia de Resende, em Évora, a diferença entre os usos destas duas palavras no Alentejo e fora dele:
“Terra de grandes barrigas
onde só há gente gorda.
Às sopas chamam açorda,
à açorda chamam-lhe migas"

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Portas e Janelas que contam histórias...


Da autoria da pintora Bela Mestre, natural de Alcáçovas, este livro leva-nos a percorrer, através de lindíssímas aguarelas, as ruas desta vila tão genuinamente alentejana.

E estas aguarelas de portas e janelas de Alcáçovas contam-nos histórias vindas de outros tempos, de antepassados que já não se encontram entre nós..

Em sua homenagem, este é um livro que lhes faz justiça...

Parabéns Bela...








Este livro pode ser adquirido nos Postos de Turismo do concelho de Viana do Alentejo, situados no Castelo de Viana do Alentejo e no Paço dos Henriques, em Alcáçovas...

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Foram-se embora...

Foram-se embora. 

Fecharam-me e foram. 

Nunca mais voltaram. 

Nunca mais ninguém se veio assomar ao postigo. Nunca mais o talego do pão à porta. 

Levaram as cortinas e pregaram tábuas nas janelas. Já não moram fotografias nas paredes. Puseram as coisas em caixotes e abalaram. Ficou a mesa da cozinha. Duas enfusas. 

Algumas cadeiras. Um candeeiro partido. Ficou a cama onde nasceu a menina. Ficaram os primeiros passos. E as primeiras gargalhadas. 

Numa casa vazia as memórias ecoam mais alto. 

Vieram aí uns homens um dia destes. 

Tinham voz de estranhos. Olharam para mim como se eu fosse apenas uma casa. Abanaram a cabeça e encolheram os ombros. 

Traziam um verbo naquele presente que não chega a tempo.

 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Alentejo e a sua grandeza


 A minha grande homenagem

Aos mineiros de Aljustrel
Homens de grande coragem
Que com o perigo interagem
E assim honram seu papel
Explorando cobre e zinco
Em galerias traiçoeiras
Eles trabalham com afinco
E é por isso que eu vinco
Seu papel de toupeiras
Homens de grande valor
E grande admiração
Que fazem da sua dor
A razão do seu labor
Prá'ssim ganharem o pão
Nas profundezas da terra
Onde só há escuridão
Muitos perigos os esperam
E por isso eles veneram
Pedindo a Deus proteção
São expostos à humidade
Mas também muita poeira
Um trabalho na verdade
Em que só a necessidade
Obriga a tanta canseira
Põem sua vida em perigo
Sua saúde também
Pois grande é o seu castigo
Lutar contra um inimigo
Que não respeita ninguém
Muitos riscos enfrentando
Pois tudo pode acontecer
Por vezes ficam rezando
E a Deus implorando
P'ra que os possa proteger
São filhos pais e irmãos
Que juntos vão trabalhando
Estes bravos cidadãos
Calejando suas mãos
Assim se sacrificando
A terra vão desventrando
Para extrair o metal
Muito pouco vão ganhando
E a vida vão encurtando
Naquele trabalho infernal
Expostos ao sofrimento
E aos perigos da profissão
Passando grande tormento
Vão aceitando o momento
Sem grande lamentação
Pessoas de grande humildade
E de boa convivência
Tudo gente de verdade
Sem mania nem vaidade
E de humilde aparência
P'ra ganharem seu sustento
Das tripas fazem coração
Sem que se ouça um lamento
Apesar do sofrimento
Que custa ganhar o pão
Sozinhos nas profundezas
Sem ter qualquer alegria
Grandes são suas tristezas
Rodeados de incertezas
E sem ver a luz do dia
Sua alma fica escura
O coração apertado
Até chegar a altura
De sair da supultura
Por o turno ter acabado
Já estão habituados
A sentir na boca o fel
Toda a vida explorados
E muito sacrificados
São os mineiros de Aljustrel
AUTOR: António Correia Ramos