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terça-feira, 6 de novembro de 2018

Ermida de Santo Amador ( Campinho )













A aldeia de S. Marcos do Campo, com um total de 840 habitantes, pertence à freguesia do Campo e situa-se a sul do Concelho de Reguengos de Monsaraz, estabelece a sua relação com a margem da albufeira constituída pelo rio Degebe, e com a aldeia da Amieira na margem oposta.

Fica localizada a Sul de Reguengos de Monsaraz da qual dista cerca de 10kms.


A ermida de Santo Amador fica situada perto de S. marcos do Campo e encontra-se completamente abandonada e em ruínas.


"O Alentejo está a perder uma oportunidade com o Turismo por estratégias erradas e inércia do poder local.
Somos um território com características únicas no Mundo e continuamos a "vender" um Verão abrasador e uma calmaria aborrecida.
É preciso apostar na Identidade Cultural que tem a sua face no PATRIMÓNIO.
Os turistas querem conhecer e explorar, têm que ser acompanhados por quem fale línguas e conheça a região.
MAIS DINAMISMO e menos politiquices, gasta-se pipas de massa em compadrios e quem vai pagar são os nossos filhos."

Texto: Luís Lobato de Faria

Fotos da autoria do nosso compadre Luís Lobato de Faria.
( Monte da Fonte Santa, Alandroal )

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Antónia e os seus meninos


A Antónia queria muito aos seus meninos. Criava-os a mel e sopas de leite. Fazia rendinhas para rematar as golas e as bainhas dos vestidos das meninas, passava goma nas camisas que os meninos haveriam de usar na missa ao domingo.
Antes de dormirem, preparava água morna para lhes lavar os pézinhos delicados, os dedos gordinhos, punha-lhes pó de talco nas preguinhas do pescoço e das pernas. Cheirava-os, penteava-lhes os cabelos. Cem escovadelas pelo menos em cada uma das meninas. Uma trança grande a pender das costas de cada uma delas. 

  Os lençóis estavam brancos, imaculados, corados ao sol da Terra. O da manhã apenas porque o do meio dia fazia-lhes manchas amarelas e isso seria impensável. 
Engraxava os botins, encerava-lhes os atacadores para que fizessem um laço direito. Costurava, cerzia, calções, vestidos, camisas, lencinhos com as iniciais de cada um. Entre as dobras da roupa nas gavetas, colocava raminhos de alfazema nas das meninas e de rosmaninho no dos meninos. Não os deixava ir para a escola sem verificar bem o comprimento e a higiene das unhas , o asseio da roupa, o brilho dos sapatos: era o que mais faltaria, os seus meninos em desalinho! O falatório que não seria!

  Subia cedo antes do romper do dia às courelas do monte para ir buscar o leite mais fresco ou um queijinho atabafado, envolto em mil cuidados, para o pequeno almoço.
Se lhes subia alguma febre, já não dormia a Antónia. Noites a fio de olhos esbugalhados pousados no sono ardente do seu menino ou na testa em chamas da sua menina.
Ninguém na Terra os via pela hora da calma. Queriam-se branquinhos e sem mancha os seus meninos. Segurava-os pela mão até que aprendessem os primeiros passinhos, carregava-os ao colo para que não os incomodassem as terras barrentas, os cascalhinhos da estrada, as caganitas de ovelha.
Benzia-os à lua, mandava rezar novenas quando os via aflitos.

  Fez-se velha a Antónia, mais velha que a Terra toda, que o círculo longínquo das planícies e dos olivais ao longe, na espera constante pelo regresso de alguns dos seus meninos.
Foram indo para a cidade uns, para o estrangeiro outros e a Antónia ficou, segurando as paredes do monte, mandando caiar, podar, amanhar tudo todos os anos não fosse algum dos meninos entrar-lhe pela porta dentro de surpresa, matar-lhe as saudades que a matavam.

  Não a puderam salvar os seus próprios filhos. Eram para lá de meia dúzia, criados a fome e a ausência pela avó, uma comadre ou uma vizinha. Batiam-se nus e descalços pelas côdeas dos bolos na Travessa do Forno, traseiras da padaria. Morreram dois de barriga inchada de ar ou de maleita a que não procurou dar nome.
Escola se a conheceram alguns foi pela mão da Mestra que os atraía com a promessa de um naco de pão e uma malgazinha de leite.

  Também eles se foram, um após o outro: casaram, fizeram outros meninos que juraram, iriam ter mais sorte do que eles, filhos esquecidos de uma mãe que não usava o título entre a sua gente. 
No dia em que a encontrou o Zé da Inácia que por sua ordem, ia ao monte de duas em duas semanas para cuidar da horta e dos jardins, mandou que se avisasse uma filha, a mais novinha que por ali ficou por se ter casado com o viúvo dono da mercearia (promessa de sustento?).

  Logo a notícia se espalhou como um rastilho pelo sangue dos da Antónia. Vieram sem rendas, golas engomadas ou sapatos engraxados. Vinham sem saber bem a que vinham ou quem iam encontrar naquela caixa de madeira comprida que colocaram no centro da casa que lhes diziam ser a sua. Mas não conhece casa quem não encontrou o calor no colo da sua mãe.

  Dos seus meninos bonitos, todos engenheiros, doutores, bem casadas, gente graúda da Terra mas há tanto fora dela, nem o vento ouviu falar. "Finou-se a criada, Deus a tenha!" disse a matrona, lá longe numa cadeira perto do mar.
Os filhos esses, choraram de rijo, fizeram exéquias, assumiram um luto negro fechado como se deve a um parente. 

  Pois na Terra o sangue é como um ribeiro no seu caminho: salta obstáculos e desvia-se muitas vezes, mas acaba sempre por juntar-se ao leito. 


Texto da autoria da nossa comadre Ana Terra.
Copiado do blogue: https://aterradaana.blogspot.com/
Foto: Ricardo Zambujo.

sábado, 6 de janeiro de 2018

Chove Terra ( By Ana Terra)

Foto:: https://nit.pt/out-of-town/back-in-town/dark-sky-chuva-estrelas-alqueva
Créditos: http://www.miguelclaro.com/wp/

"Hello darkness, my old friend
I've come to talk with you again
Because a vision softly creeping
Left its seeds while I was sleeping
And the vision that was planted in my brain
Still remains within the sound of silence"
                                      
                                 Simon & Garfunkel, The Sound of Silence



Chove de rijo na terra. Chicotes de água açoitam as margens das ribeiras, os açudes ressequidos pelo abraço de brasa, opressivo do sol. Saltam, salpicam gomos cheios de água prenhes de arco-íris, espelhos transparentes do céu que os mandou.Vêm redondos, perfeitos como olhos de perdizes a invadir a planície e esparramam-se desenvergonhada e desordeiramente pelas fendas no solo, chegando ao seu fundo numa fusão infinita, cega e fundamental. 

  A Terra conhece água. Os que não são dela, dizem que não é assim. Não é verdade. Terra é água e dela vive. Em torno dela, isto é. 
Falta, abunda. Tira, dá. Destrói, cria. Com água se inundam os olhos de todas as Mães da Terra quando o peito se abre em sulcos como os do chão que pisam. Água é o que corre pela testa, por debaixo das boinas, lenços, de todos os Homens que não conhecem estações ou dias de cores diferentes. Água para parir, água para lavar, água para ungir, benzer, inundar de vida e de sagrado (e não é isto falar do mesmo?). 

  Água nas cantarinhas a saber a barro, tão fresca, tão renovada que se diria estar o dito utensílio em lugar de fonte jorrando água constante do centro da Terra. Água em baldes de lata atirados ao ar, desenhando curvas liquidas em redor das soleiras das portas que depois se esfregam com panos, vassouras até que brilhem muito mais que os astros e as entradas das vizinhas. Água para nadar, como se veio ao mundo, sentindo os barbos, bogas, achegãs roçarem as pernas, e os pés escorregando nas pedras musgosas a fazerem leito. 

  Chove com força, como um látego pesado no dorso da Terra. É tudo ou nada deste lado do rio. Este Sul que é mais sentido do que geográfico tem os extremos de um território inóspito mas apetecível; os desvelos de uma mãe carinhosa com mãos rugosas, ásperas mas com perfume de leite e mel, um toque de hortelã e poejo. Sul que sente ainda o cheiro do oceano e que se diz plano mesmo do seu ponto mais alto. Que deixa vir água do céu e a recebe como a um deus descido do Olimpo dignando-se a caminhar na Terra. 

  Só que quando chove neste Sul, é de verdade. Com uma intensidade, uma ânsia desconhecida noutras paragens. Uma vontade imensa de absorver a água toda que se não vier carregada, gorda, pesada, depressa desaparece na imensidão, nos vastos caminhos de terra da Terra.

  Lava-te pois Terra, faz lama nas ruas ladeadas de paredes brancas caiadas, abre as bocas dos ribeiros que as circundam e faz-lhes salpicos só de pirraça. Obriga as moças a calçarem as botas de borracha para irem à venda ou à missa, os rapazes a abrigarem-se no telheiro da escola ou os velhos a recolherem ao lar, por dentro do útero da cozinha de onde parecem jamais querer sair. Faz-te nova, avança. Lavra o teu chão e prepara-te para lançar as tuas sementes. Mais tarde as mandarás com beijos das abelhas nas flores, pelos bicos dos pássaros celestes a Terras fora de ti. 

  Sabes que é assim que se recomeça. Que se renasce. Água e Terra fazendo Vida. 


Texto da autoria da nossa comadre Ana Terra, copiado do seu blogue:
http://aterradaana.blogspot.pt/

domingo, 29 de janeiro de 2017

Grande Lago de Alqueva










É sempre um prazer caminhar nas margens do Grande Lago de Alqueva, faça chuva ou sol...
Desta vez, fomos explorar uma área perto da aldeia ribeirinha do Campinho e, é claro, gostámos muito de percurso.
Como se pode ver pelas fotos, a cota máxima estava longe de ser atingida, o que nos permitiu andar pelas margens do grande lago, sem nos preocuparmos muito com vedações ao longo do caminho...
Nesta área da Raia Alentejana, compreendida entre Elvas e a Barragem de Alqueva, existe uma equipa de Guias Locais que organiza passeios culturais,
a "Trip Alentejo".
Para conhecer os passeios:
Contactos: faria100@gmail.com   Tel: 00351 - 965670853
https://www.facebook.com/luis.lobatodefaria

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Teresinha Noiva Linda


Na Terra as manhãs são límpidas. Tocam os sinos a marcar as horas. A luz e o som entram pelas casas, pelas frinchas das portas e das janelas e pelos intervalos dos postigos. As cortinas de renda ondulam levemente, quase sem o fazerem, aos primeiros sopros da brisa da manhã. Ouve-se o som de uma cancela de madeira a arrastar e os pássaros fazem piados lentos e bonitos para dedicar às primeiras horas do dia e aos homens madrugadores. Dentro em pouco subirá no ar o cheiro das fatias fritas, do café fervendo, da lama assente nos caminhos a secar aos primeiros raios de sol.

  Pela estrada velha, a única na Terra antes dela o ser, sobe-se ao Monte, o lugar único onde tudo começou, abençoado pela água sob a forma de uma ribeira que lhe corre por dentro e que o faz senhor de tudo quanto o rodeia. 

  Teresinha não sentia que habitava o Monte mas antes que este a tinha engolido quando criança e que vivia presa nas suas entranhas, qual Jonas na barriga da baleia. Vivia uma existência abúlica, de mão no queixo, cabeça nas nuvens, olhos muitos vezes cerrados ou levemente húmidos por conta dos sonhos acordada ou dos inúmeros bocejos. Vestia vestidos de algodão leve e rendas, sapatinhos de pele importada, o cabelo em canudos estrategicamente presos com laçarotes de cetim. Palavras bem medidas, aulas de costura, Francês e Religião com as freiras da vila e de doçaria com a Ti Inácia na cozinha, Teresinha parecia uma santa ou uma boneca na caixa, com a corda nas costas, ainda virgem, pronta a ser puxada para que andasse e falasse como era esperado que fizesse.

Teresinha era pois, facto consumado, um lindo vulcão bem vestido e penteado, adormecido. Acordava todas as manhãs e inspirava profundamente o primeiro ar frio do dia com esperança de que se enchesse tanto de ar que talvez ficasse leve e flutuasse, voasse por cima dos muros altos do Monte, do olival e da vinha que se estendiam numa área infinita para lá da sua janela.

  Teresinha odiava com um amargor não suspeitado, o servilismo forçado das criadas. As constantes tentativas para lhe tentarem perceber todos os sinais, tiques e toques, à mesa, na cama, portas adentro, antecipando-a, acreditando que isso sim, era bem servir. Todos os dias recomeçava Teresinha uma batalha com o seu lar, de gente que não lhe estava próxima do coração ou sequer que a tocasse ao de leve na pele, via rápida para os sentimentos.

  Às vezes vinha a Dona Laura, professora da escola primária, para tomar chá e bolinhos e a conversa revolvia invariavelmente ao redor das crianças miseráveis da Terra, de barrigas vazias mas de peito cheio, trazidas à escola pela mão das avós ou dos irmãos mais velhos ao toque da sineta. Mais tarde, à porta do Monte acumulavam-se muitas vezes essas mesmas crianças, andavam "à pida", quilómetros a pé e em bando, implorando de porta em porta, por um aconchego para o estômago, alguma coisa que engrossasse o caldo magro que recebiam nas suas casas à noite.

  Teresinha dava-lhes tudo o que aparecia, sacos de nozes, potes de mel, metros de tecido, qualquer coisa, sem pensar a quanto nem porquê. As criadas impacientavam-se, que tudo isto lhes desorganizava as contas e o avio. Quanto ao pai e à mãe, não se opunham, alguma coisa teria de ter Teresinha com que se ocupar até que se casasse, ou não? Manuel Augusto e João Bernardo, seus irmãos mais velhos, lá estavam, cada um na sua vida, um engenheiro na capital e o outro, senhor de terras ainda mais a Sul, um deus ganadeiro que prometera a seu tempo, trazer marido para a irmã mais nova, um homem direito, como ele próprio, outro pequeno deus que pudesse transferir calmamente a sua irmãzinha da barriga da baleia para a boca do lobo.

  Uma ocasião, voltou atrás um desses gaiatos que andavam de monte em monte, dia após noite. Chegou já ao final da tarde, pouco faltava para a hora da ceia e envergonhado, pediu à criada da cozinha para falar com a Menina Teresinha. Mandava-o seu pai, homem novo mas viúvo que por conta de um feitio inquieto e bravio, já não tinha parança em trabalho algum sob a alçada do senhor do Monte. Devolvia com muitos agradecimentos a nota alta que lhe mandara a menina, que dinheiro não, não precisava, só de trabalho e de comida para a boca.

  "- O teu pai sabe ler?" indagou Teresinha ao gaiato. Que sabia, que, filho do único sapateiro da terra, tinha podido fazer até aos estudos liceais e que mais não fizera porque se lhe foram os pais na mesma altura e que tinha tido de começar a trabalhar. Não contava porque não sabia que pela mesma época, engravidara a sua mãe e que teve de fazer um casamento apressado, mal tendo onde viver e o que comer e pouco gozando da alegria de ter uma mulher que esta também se finou no parto do seu menino. Zé do Diabo o passaram a chamar. 

  Pois mandou-lhe Teresinha uma mensagem no papel perfumado de carta que tinha na mesinha de e no qual redigiu tantos outros bilhetes que se seguiram a este, com o mesmo destinatário. Perdoasse pois o Sr. José a insolência, se lhe causava mau estar, que havia mandado o dinheiro ao menino pois as criadas adivinhando a vinda dos gaiatos, lhe haviam sumido com tudo da frente e trancado a despensa com a desculpa dos ratos e que com dó de ver os meninos saírem do Monte de mãos vazias, passara a cédula para a mão do Alvarito (assim se chamava o menino) que lhe parecera o mais ajuizado, para que a repartisse com os seus companheiros.

  Desculpas aceites, o Zé do Diabo não podia consentir que a menina Teresinha pensasse pois que, pobre ninguém, se tomara de ofensas por teimosia em questão tão miúda. Bilhete veio, bilhete foi, passou-se um ano na vida do pequeno Álvaro em que a missão de levar e trazer palavras do Monte à Terra e pelo mesmo caminho de volta, era mais importante do que saltar ao arco ou jogar à malha no Largo do Poço. 

  Pela Festa de Verão viu-se o Zé do Diabo pela primeira vez pisar a casa de Deus na Terra, igreja adentro, fato novo, botas engraxadas, quase um desmaio ao ver Teresinha, santa e vulcão, pisando discreta o caminho do altar para comungar. Acabada a festa, foi um ar que se lhes deu aos dois. Antes, aos três. Em cima da cama no Monte, as rendas, os laços, a mãe lavada em lágrimas, os ecos dos gritos do pai e dos irmãos, jurando matá-los ou renegá-los se não o conseguissem.

  Fez-se uma nova Terra noutra Terra em que Teresinha se fez do Diabo, em que se permitiam ser vulcão e ribeiro manso, uma santíssima trindade de trabalhos, de risos, de dias difíceis e completos. Em que um Homem é Homem no sagrado da sua casa, da sua própria Terra.

Texto da autoria da nossa comadre Ana Terra, copiado do seu blogue: 
http://aterradaana.blogspot.pt/

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Campinho

















Junto á aldeia de Campinho, com a Barragem do Alqueva mesmo ali ao lado, o Projeto Alcáçovas Outdoor Trails organizou em 2012 uma caminhada para um grupo pedestrianista vindo da área da Grande Lisboa.
Caminhámos cerca de 20 kms, sempre com uma paisagem natural lindíssima, como se pode observar nestas fotos...
Campinho pertence ao munícipio de Reguengos de Monsaraz e foi freguesia até há pouco tempo.
A cerca de dois kms desta aldeia, existe um pequeno ancoradouro nas margens do Grande Lago Alqueva.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Joana da Cruz

in Alexandre Pomar, Sete Fotografias
"Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos."
                                                      SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira.

Difícil é pôr em papel o tom de uma voz. O trinar antes, de uma garganta que seguramente estaria reservada muito mais para pássaro do que para gente. Primeiras tiradas, requintas vibrantes, Joana cantava com o corpo todo. Antes mesmo do tempo das igrejas na Terra, a sua voz era como cântico divino, a multidão em sua volta para a ouvir cantar uma- não tão pequena- assembleia de fiéis.

O povo não a ouvia sem se comover, sem se deixar imbuir de um dó mito maior do que o que viva nas notas e palavras das muitas melodias inventadas pela boca de Joana. Até ao velho Jerónimo, pastor de cabras, nos seus caminhos perdidos, lonjuras da Terra, o som da voz de Joana alcançava. "Eia Joana de uma cana!" gritava-lhe o velho lá de onde estivesse, corpo sacudido pelo choro, sinal de uma solidão que nem sabia que sentia.

Era assim a voz da moça, parecia que entrava pelos corpos adentro, fazia a gente de repente consciente de que o coração bombeava o sangue: o som entrava na cabeça e depois era o diabo para sair. Os olhos fechavam, a cabeça pendia como que a pedir oração ou a vergar-se à sua inevitabilidade. E se algum grupo era chegado, botas de cardar batendo o terreno, pés firmes pelas ruas da Terra afora no final de mais uma jorna, ao som do arranque do peito da Joana em versos que faziam doer por dentro, imediatamente se sustinham. Imóveis. O tempo parado. O ar quieto. O calor a fazer tremer a paisagem e a voz de Joana solta pela planície, a atingir em cheio o pôr do sol. 

Todos os dias igual. Serviço acabado, chão de lajes lavadas, tímidos estalos do lume a soarem no lar se era Inverno ou o som dos primeiros ralos nos aloendros e pereiras do quintal se acaso fosse Verão. Joana tomava da sua cadeirinha branca de florinhas azuis enfeitada, assento de palha grossa entrançada, presente dos padrinhos aos quinze anos. Ensaio de um dote que nunca chegou a sê-lo ou a servir como tal. A cadeira em frente da porta de casa e enquanto debulhava favas, ervilhas, feijão, vagens, Joana afundava a dor, tanta e tão comovida,em notas perfeitas, numa garganta de mel, numa língua agitada, numa voz clara, pura a lembrar água corrente, ribeiro manso na secura da Terra. 

Aos quinze anos precisamente caiu Joana da Cruz de rosto num braseiro. Os olhos não se salvaram. O rosto queimou como papel. Joana só por dentro. O seu dote descobriu-o nos versos que dita, na música que nunca soube que lhe vivia no avesso.

Ninguém se atreveu a falar da maldição de Joana pois se a tantos lhes parecia mais uma benção. Se não para a própria, para os da Terra, gente de pouca fé. que descobriu o sagrado no som daquele peito magoado, naquela boca desfigurada e que cantava o amor e o desamor como se os conhecesse de outras vidas, de outros lugares.

Dentro do coração de Joana, o lume não interferiu para estrapaçar. Antes, atiçou-lhe como que uma chama nova. Um som que falava com ela, que a convidava para os limites de todas as Terras, que a fazia ver para além da alvura das casas, do pó vermelho dos caminhos, que as árvores e muros de pedra marcando os limites destes montes e herdades.

Crescia Joana em cada nota. Elevava-se para lá do que os seus olhos aguados, quietos, afundados, chegaram a ver nos quinze anos em que falaram com ela. Nunca houve pena em Joana. Havia uma dor calma, quase serena. Talvez a dor de saber que é necessária dor para que haja crescimento. Para que no fim, a sua voz viaje e cante por ela e por todos quanto na Terra habitam e não têm voz.

Copiado do blog da nossa comadre Ana Terra,  http://aterradaana.blogspot.pt/

quarta-feira, 29 de junho de 2016

O Pascoal e a Terra


 
"Nunca ouviste passar o vento. 
O vento só fala do vento. 
O que lhe ouviste foi mentira, 
E a mentira está em ti." 


Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema X" 


  O Pascoal era só mais um filho da Terra, tão vulgar ou especial como os pilares que sustentam as abóbadas altas das casas brancas ou como as mimosas e olhinhos-de-mel que salpicam a charneca.
Ser único na Terra é ser todos e por isso mesmo o Pascoal não era um gaiato diferente dos outros, o jeito para a bola, o mesmo; os dedos das mãos contados não davam mais nem menos que os dos seus companheiros.

  No entanto e apesar da felicidade geral que os da Terra sentem ao afirmar-se unos ou só mais um para fazer o todo, o Pascoal tinha um andar, um ar de quem se importava com estas coisas. E de quem importava mais do que todas as coisas.

  A facilitar, tinha na avó Roberta uma motivação como se vêem poucas, para seguir de calcanhares bem firmes no chão e nariz levantado no ar, bem acima dos demais. Os seus pais tinham umas terras, coisa pouca, uma azeitona para o lagar, dois ou três porcos, um nadinha de horta. Pais já quando a esperança de o ser se acabara, tinham tomado o ofício de caseiros na Quinta Nova e trazia-se pois o menino criado com requintes de fidalgo pela avó, velha como as entranhas da Terra, nas ruas da aldeia, seu palácio.

  Os pés cresceram em sapato, a gola dos casacos o taparam da chuva e do frio e sempre a velha Roberta tinha para ele no seu regresso da escola ou da vadiagem, uns brinhóis acabadinhos de fritar, um caldinho de galinha quente com os pequenos ovos cozidos a emergirem na tigela de barro ou ainda uns bolinhos fintos com licor de poejo que "um dia não são dias e o menino tem de se criar". Na venda do Carrasquinho se a viam entrar, já se sabia que ninguém de lá saía sem ouvir bem a história do seu príncipe, um pequeno milagre que Deus ou as artes mágicas lhe entregaram para que fizesse dele um homem. Mas não um homem qualquer. Qual! O seu Pascoal, nascido que foi no Domingo de Ramos se não se estava mesmo a ver, que estavam para ele guardadas grandes coisas na Terra. As comadres riam-se e encolhiam os ombros. A Ti Ana do Paulino de uma vez bem se apoquentou com ela eram os netos anda uns fedelhos de cueiros. Tudo por modo de um comentário da velha Roberta ao neto da outra pobrezinho, que lhe parecia um enfezado, as pernas umas caninhas, quando comparado com o seu Pascoal, um rapagaço, de andar firme e olhar decidido.

  O moço por sua vez cresceu mesmo em imponência, ombros largos, voz rouca, aos treze anos apresentava já os primeiros sinais do que viria a ser um bigode escuro, cerrado sem o qual nunca mais foi visto, moda rara nestas partes da Terra. Na escola, Dona Lurdes tratava-o nas palminhas. Muito possivelmente seduzida pelas alcofas cheias de morcelas e cacholeiras, melões e tomates maduros e um punhadito ou outro de feijão meloal que a velha Roberta lhe fazia chegar de ora em quando pela porta do quintal da casa de professora.

  Não que fosse mandrião ou que tivesse pouca inclinação para aprender, o Pascoal impacientava-se antes com o tempo que passava sentado atrás da carteira, imóvel, quando o que mais queria era andar pelas ruas a mostrar as suas botas novas, toc-toc-toc, no chão asfaltado do largo, ou a correr em direcção à ribeira e de lá pescar o maior achigã que pudesse para vir exibi-lo depois aos companheiros, aos vizinhos, a toda a gente.

  O Pascoal era corpo, era ímpeto, um furacão. Por isso mesmo não seria de estranhar que o Pascoal escolhesse uma mulher à altura, chegada a hora de arranjar namoro. Pois nisso, o Pascoal foi mais longe que qualquer um na Terra ou nas terras fora dela. A Lídia era a filha de um caixeiro-viajante. O pai vendia tarecos, panelas, tachos, facas, copos de latão, numa carroça de terra em terra, sem terra que fosse sua. Conheceram-se na Aldeia do Meio em Junho quando o Pascoal foi para lá desafiado para uma caçada. A Lídia estava montada numa carroça a apregoar tudo o que o seu pai, doente e afónico, já não conseguia vender sozinho. Vestia mal, roupa um pouco sovada do uso, cabelo mal amanhado, não havia vaidades na hora de trabalhar. Só que para o Pascoal lá da Terra, foi como ver o rosto de Deus, O pescoço alto, fino, as pernas longas sob a saia arregaçada, a trança desfeita, mechas de cabelo forte, ruivo a encaracolar por fora da fita, um retrato que fazia de Lídia um espaço inteiro, sem vazios a ocupar o Pascoal por completo.

  Na Terra não se falava de outra coisa: o portentoso Pascoal, benção do Domingo de Ramos, fugira com a filha do caixeirinho. Não havendo desfeita nisso, riem-se no entanto os homens, cochicham as mulheres: quanto mais alto se sobe...
E a Terra é dura. Implacável. Regressam a ela todos os que são dela.

  A velha Roberta emudeceu. O dia fez-se noite e enquanto fervia umas sopinhas de tomate com batatas na panela de ferro junto ao lume, pôs-se a cismar no triste destino que pôs afinal o seu Pascoal no mais comum dos trilhos da Terra. Caiu de borco ali mesmo e nunca mais voltou a falar. A filha recolheu-a na sua casa e o casamento lá acabou por se fazer. Todos se conformaram e a Terra engoliu a grandeza do Pascoal. Deu-lhe a vida não de um, mas de todos os que a habitam.

  Afinal, quem na Terra não teve o seu destino ditado pelo Amor?

Copiado do blogue da nossa comadre Ana Terra:  http://aterradaana.blogspot.pt/

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Do coração da Terra...


"Loucos ou sábios, como o saberemos? Consolávamos o inquieto coração pousando os olhos na linha imaginária do horizonte, e vivíamos."

                                                   in Uma Pescaria (conto), Agustina Bessa Luís

O toque é estranho aos que por debaixo dos panos, das vergonhas e pudores diários, trabalham a Terra. São elemento quente, apontamento suave no solo frio e duro que se rompe dia após dia para dele retirar vida e sustento. Estremece-se o corpo, aos dedos que deslizam discretamente por um braço, que por sua vez mal os sente fisicamente, tal é a profusão de camadas com que se cobre. 

Mas o coração, oh esse sim, tem terminais nervosos muito mais sensíveis que os da epiderme. O vento morno de um murmúrio soprado numa nuca, ali bem a rasar a linha onde termina o nó do lenço ou o roçagar leve de um joelho noutro em dois corpos sentados em cadeiras à beira do lume e que mal se podem olhar. São toques, pormenores que não se podem perceber senão com um sentido que não é o sexto ou sequer o último, mas o primeiro de todos.

O sentido das coisas em que tudo encaixa, se ajeita, se compreende sem a necessidade supérflua de palavras, sons, diálogo nenhum ou entendimento racional de qualquer espécie. O coração dos que se tocam sem precisar de o fazer, não tem limites humanos ou naturais. Vive muito para além das fronteiras desta Terra: galga os cursos de água, pisa os poejos e a hortelã-da-ribeira deixando o rasto e o cheiro da memória no ar pelo caminho; voa por cima dos telhados de telha marselha; bate asas acima do branco dos rostos das casas e chega exactamente onde tem de chegar, no momento exacto para que o outro coração que o espera, saiba que o caminho é menos que nada, obstáculo ridículo entre um e o outro.

A pele de dois corações que se fazem corpo tem rastilho, pavio curto. Incendeia-se constantemente ao toque, à presença apenas- real ou imaginada- da sua metade fundamental. Nos bailes de Verão, sobre o chão escuro de tacos da Sociedade Recreativa ou na terra batida do largo, enfeitado de luzes foscas, em tom amarelado, ao som de uma qualquer moda argentina, que poucos parecem realmente escutar, sobressaem não raro, um par de pés que não tem duas vontades. São desses que falo. Os corpos agarrados, viajam muito acima de qualquer som, de todos os elementos físicos na Terra: eles já se encontraram num qualquer plano divino em que viveram muito antes dos se pés se encontrarem num fim de tarde em Agosto.

E quando a tela dos corações se cose, reúne, fica una de novo, então não há maneira de o ignorar, de lhe voltar as costas humanas. Na Terra chamam-lhe bem querer, ou só querer. Tanto, tanto que em breve os homens terão de erigir a casa, as mulheres terão de cortar e coser os tecidos que servirão de abrigo para guardar este coração novo, reunificado, esplendoroso, que vai viver num tão simples corredor da Terra.

Porque dizem os antigos, que o Amor é simples e que é só assim que ele vive. E que dá testemunho. E que toca sem tocar os que a ele acorrem e que por ele vivem.

Copiado do blog da nossa comadre Ana Terra: http://aterradaana.blogspot.pt/

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Mães e Filhas num fio de Terra

Pierre Gonnord@ in http://charivari.pt/2015/03/12/a-nobreza-da-comunidade-cigana-do-alentejo-em-serie-fotografica/

 "What if I fall?
   Oh, but my darling, what if you fly?"

                                Erin Hanson

  As mães e as filhas estão cosidas umas às outras, num lugar nunca visto, muito imaginado mas frequentemente sentido entre batidas do coração. E definitivamente real, absolutamente indicável, passível de ser provado e apontado até por duas manitas em crescimento ou em sorvos profundos do corpo da sua mãe.

  Há uma cola universal que nasce com a mãe, não quando ela nasce, mas quando nasce como mãe, que faz a sua função de unir, unificar, um e outro coração: uma mãe e a sua filha. A esta ponte que não chega a se-lo pois não há duas margens mas apenas um rio grande, furioso de emoções, acrescentam-se as horas em que duas foram sempre uma, os dias a sucederem-se aos dias numa infinita partilha, numa fome nunca acalmada de precisar de se ser só uma quando os corpos são dois.

  A Terra cresce com as filhas e molda as mães. Sabe quem elas são muito antes de elas o serem. Estende-lhes o chão debaixo dos pés para que ande uma e logo a outra, sob o sol quente, num caminho que é só delas. A mãe e a filha parem-se uma à outra em choros e em dor: o choro de se querer tanto esta vida nova para sempre a duas, a dor de saber já que terão de viver tantas outras dores sem que a mão amada possa lá estar constantemente a amparar, a mimar, a cuidar.

  Dão-se os primeiros passos, pouco firmes é certo, neste universo novo e o mundo desalavanca as suas estruturas para voltar a girar um e outra vez. Os dedos perfumados de sabão azul, de terra fresca, de coentros e poejos que são os da mãe, pousam suavemente sobre os das filhas para paulatinamente, a irem ensinando o jeito certo para amassar um pão, para alimentar as galinhas, para cerzir umas calças, para temperar um caldo ou varrer as lajes da cozinha.

  Mais ainda, a menina pequena, mulher em construção, aprende sem palavras, a tomar conta do corpo, a sarar as suas feridas, a chorar as suas tristezas, a benzer os de casa. Meneia-se ao som de um acordeão nos primeiros bailes tal como viu a mãe fazer às escondidas num dos quartos, enquanto achou que ninguém a viu porque bailes não são já para ela, que os gozem as raparigas solteiras.

  Crescem as meninas e às suas mães crescem os cuidados. Saem-lhes do colo ainda de cueiros e fraldas de pano e voltam em vestidos de noiva, num qualquer Sábado ou Domingo escondido numa dobra do tempo, inacessível a qualquer mãe.

  As mães choram as mágoas das filhas porque são as suas, duas vezes. Sai-lhes do peito o coração logo que as vêem dar os primeiros tropeços nas ruas de terra batida, para depois nunca mais o poder voltar a guardar, porque tudo é um cuidado, uma dor para a mãe impotente que só pode deixar que a menina nasça mulher.

  Há no entanto, latente entre elas não importa a distância na Terra ou fora dela, um fio que não se quebra. Permanece na filha uma sensação de que mais tarde ou mais cedo se transformará na sua mãe, que serão uma finalmente, no dia em que ela souber o que é a maternidade e começar tudo de novo.

  Por isso um colo é um espaço infinito e não cessam os abraços em redor do pescoço. Mudam-se os motivos, as idades, os dias passam e com eles os céus roxos e laranjas das planícies, mas uma mãe quando nasce é para sempre. Uma filha é bem mais do que uma pessoa a quem pariu: é a possibilidade sim, de ser-se de novo, uma vez após outra, de cumprir-se e concretizar-se em todas as mulheres da Terra.

Texto e foto copiados do blog da nossa comadre Ana Terra, 
http://aterradaana.blogspot.pt/

domingo, 28 de junho de 2015

Joaquina da Terra

A Joaquina é um bicho-da-conta. Toda enroladinha, os queixos a baterem no peito, as costas curvadas numa curva perfeita, tão redondinha a Joaquina que se não fossem os solavancos de uma perna com que manca ligeiramente, aventurando-se pelas ruas não calcetadas da Terra, quase se podia dizer que ia ali a passar uma lua cheia vestida de luto.
  Os gaiatos fogem da Joaquina. Mal a vêem vir dos fundos da aldeia, do terreiro seco ao pé do poço da estrada, mesmo ao rés da escola primária, até batem com os calcanhares no cu, correndo, correndo, bradando aos outros que vão vendo pelo caminho: "Foge, foge que aí vem a Jaquinita, a bruxa da cara bonita!"

  É que essa é que é a verdade: o raio da velha tem uma cara limpa e sadia, uma testa quase lisa, ornamentada com uns olhos azuis de água, de criança. Seguramente não de velha. Dizem os gaiatos que ela os roubou a uma princesa moura que passeava numa mula a colher estevas para se enfeitar e ficou com eles para ela atirando a princesa e a mula para dentro do poço ao pé da sua casa. Não há nada que os gaiatos não inventem na ânsia de explicarem o inexplicável através de cabecitas tão pequenas que ainda estão no tempo em que os animais falam e as fadas passeiam nos quintais.

  Pois a Joaquina lá vai, de manhã tão cedo que nem bem luz há. Atravessa a aldeia pelo lado das hortas. Não quer ver ninguém senão a sombra dos pastores ao fundo ou o vestígio de cor apagada de uma bata de trazer por casa de uma ou outra mulher mais madrugadora que tenha saído rapidamente para ver a cor do dia. Segue pelos frajais, rente aos muros quando os há e lá se vai arrastando como pode, vencendo a pé a língua de terreno, pedras e torrões que liga a aldeia ao cemitério. 

  Lá chegada, pára e encosta a palma da mão ao portão. Hesita sempre um ou dois segundos, imbuída do espírito de santuário que parece emanar dos contornos de ferro e ferrugem daquele portal para o outro lado da vida. Ao passá-lo, dirige-se sempre ao mesmo local, agacha-se e ajoelha-se com tanta dificuldade que quase se ouve o ranger dos ossos e das vértebras a dobrarem-se, a atingirem o solo.

  A cabeça descai ainda mais para o peito. A mulher transforma-se num vulto escuro e é difícil distinguir-lhe por baixo do lenço, vestido, meias, xaile, tudo negro, os limites do seu corpo humano. É antes uma mulher-embrião, morta em vida, em oração profunda, estática como o márnore das campas à sua frente.

  Só que dentro deste casulo de mulher há um mundo de imagens, de sons, de cores, de coisas vividas num tempo que já não há. Vê-se a si mesma, a Joaquina pequena, pequenina, filha única e adorada nos braços quentes da sua mãe, a Ti Bárbara. Ouve nos seus ouvidos já moucos as cantigas que a voz materna enchia de mel:


                                        Sossega agora minha Joaquina
                                        Faz na mãe o teu soninho
                                        Meu doce, minha menina
                                        Cheiro de cravos e rosmaninho.

  Sente o embalo dos braços da mãe nos seus. Nem sabe quando foi que saíu deles para embalar ela mesma o berço do seu menino. Traz ainda nos seios o calor do hálito do filho, sente-lhe a forma da boca encostada contra o seu peito. Aperta o seu corpinho despido de encontro ao seu, sente-lhe o odor universal de bebé, de menino da sua mãe. Na sua cabeça sussurra-lhe palavras meigas, cantigas, histórias, orações, bençãos. Cura-lhe todas as dores com um sopro leve na nuca, com o sinal da cruz na testa. 

  É mãe sozinha, o pai nunca esteve. As comadres da Terra diziam à boca fechada que fugiu enfeitiçado por uma da Aldeia Nova, que andava arranjada com uma virtuosa. "Que fosse!" disse a Joaquina. O mundo todo estava na Terra, nos olhos do seu menino.

  Só que o vento que embalava o berço, que seca os lençóis no varal, que nos empurra para que andemos, também sopra de atravesso, vira as cabeças, consome os homens, os meninos.
  Nos olhos de água da Joaquina refulgem os raios impossíveis do sol que brilhava intenso, devastador, no telhado da casa, sobre a chaminé branca de onde pendia a corda, de onde se via o seu menino pendurado pelo pescocito. Nem homem era, nem dera tempo de o ser o maldito vento!

  Nesse dia encurvou-se a Joaquina. Não mais olhou para cima. Poucos podem dizer, depois desse dia, que lhe viram a água dos olhos ou o rosto limpo. Enrolou-se, desprendendo-se dos ossos, caíu sobre o chão e deixou-se estar.

  Vai e vem como um pêndulo, antes que o dia seja dia, todos os dias (do resto) da sua vida na Terra até ao jardim sombrio e ventoso onde repousa agora o seu menino. Volta antes que dêm por ela. Os gaiatos já estão dentro da sala de aula, poucos notam a sua passagem. Silenciosa como a madrugada, sozinha como a vastidão da planície que a fez, segue pela estrada. Arrasta a perna, avança, força-se a andar para a frente. Porque na Terra não há caminho senão esse.
Texto copiado do blog da nossa comadre Ana Terra, http://aterradaana.blogspot.pt/
Aguarela retirada do blog  http://paula-travelho.blogs.sapo.pt/