sexta-feira, 14 de abril de 2017

"O Baile" - Crónica de Manuel Manços





Lentamente, a noite aproxima-se da aldeia, que depois envolve nas suas asas de azeviche enquanto, os rapazes, deixam a taberna para se dirigirem às suas habitações, e vestirem o melhor fato e o capote, porque a noite vai ficarfresca, e parados às portas, ou às janelas das namoradas, não será agradável, eles usarempouca roupa, enquanto as raparigas, impacientes vão deitando o olhar para rua, a ver se eles aparecem.
Os adolescentes, que já “olham para a sua própria sombra” e para raparigas,com o intuito de se fazerem insinuar e lhes agradarem, formam um pequeno grupo que vai de porta em porta, convidá-las para o baile, como é tradição, normalmente organizado por eles, mas instigados pelos mais velhos que comentam, que eles precisam de organizar bailes, para arranjarem namorada.
Sempre que entram numa habitação, os organizadores do baile falam com os pares de namorados e convidam-nos para a dança, sugerindo-lhes que fechem a “velha”, na despensa, para não serem incomodados por ela.
- Vocês sã todos iguais! Só querem estar à vontade com as raparigas. Para quêi…? Nã pensam senã nas poucas vergonhas!
- Vá lá, não se zangui..., a vida é assim. Não tem ouvisto aquele ditado antigo, que diz: “em que pensas tu porco?” Ele responde: “Na boleta!”. A gente semos a mesma coisa.
A tia Maria, com um sorriso nos lábios, responde, de imediato:
- Cabrão do rapaz, que me fizestis rir... mas tem cuatela com as bofatadas, porque elas nã tão pr’os aturar.
- Dexe isso com a genti. Elas até gostom...! Bem, a genti vem convindar a su Inácia p’ro balho de logo `noiti, dexá ir?
- Se ela quiser e o pai dela dexar... Mas onde éi o balho?
- Ela queri e o pai dela dexá ir, com certeza! O balho é no Monte das Serranas -
E saiem, satisfeitos. Casa onde haja raparigas solteiras, lá estão eles a bater-lhes às portas, a convidá-las para irem ao baile e a falar-lhes com malícia, principalmente quando elas ainda não têm namorado, provocando-lhes algum rubor que as deixa, por vezes, atarantadas. Depois, a meio das conversas, pedem mais um copo, do tinto, ou do branco, tanto faz.
As mulheres e os jovens que ainda não tenham ceado a tradicional salada de alface com chouriço assado, iriam faze-lo para, de seguida se dirigirem ao Monte das Sarranas.
A rua da aldeia, que dá acesso ao Monte, no Inverno é um autêntico ribeiro onde as águas correm por regatos sinuosos, em determinados locais, e noutros fica parada, originando poças e lameiros.
A pouco e pouco começam-se a ouvir as vozes das mulheres que saem de casa, “banhada de luz”, para a escuridão e iniciam uma sessão de pragas, porque não vêem onde colocam os pés. Se não fosse a porcaria do baile, estariam sentadas no sossego da lareira, e não tardaria a hora de irem saborear o quente dos seuslençóis – pensavam e comentavam elas.
Parece uma procissão, a caminho duma romaria: todas levam a sua cadeira enfiada num braço, ou às costas, enquanto os malandros dos gaiatos fazem corridas e, propositadamente, colocam os pés dentro das poças de água, e salpicam tudo o que se encontra nas imediações, provocando ainda mais ralhos às mulheres, porque ficam molhadas e desgostosas, por verificarem que os sapatos e os vestidos novos, de suas filhas, ficam, também eles, molhados e sujos de lama – provavelmente com menos brilho que os das suas vizinhas.
Durante o trajecto amaldiçoam, também, os rapazes, por que se lembram de organizar bailes numa época daquelas, com frio e ruas lamacentas,e o inconveniente de, no dia seguinte, terem de levantar-se demasiado cedo.
Mas o pior ainda estará para chegar, porque vão ter de atravessar um caminho velho, fora da povoação, ladeado de sobreiros e de oliveiras, onde se sucedem, também, as poças de água suja e sem uma luz, sequer, será uma aventura atravessá-lo.
Os gaiatos, mais uma vez “vão fazer das suas”. Juntam-se em grupos e escondem-se atrás dos troncos das árvores e quando elas passam,por perto, saltam-lhes na frente, e assustam-nas. Jamais elas terão imaginado que passeiam “almas penadas”, por aquelas bandas, por isso, saltam e gritam lívidas de espanto ede medo. Depois, quando reconhecem as crianças vem a risota juntar-se aos mais variados comentários, e só passados instantes, as mais velhas, arranjam forças para vencer o susto e o ataque de riso, inesperados, e tornam a pôr-se a caminho do Monte das Sarranas.
Entretanto, se algum gaiato tiver a pouca sorte de se deixar apanhar, leva uma tareia, ou um puxão de orelhas e elas continuam a dar pontapés nas pedras e a encostar-se umas às outras, porque levam as mãos ocupadas pelas cadeiras não se podendo equilibrar.
Inesperadamente, ouve-se o toque da concertina e toda aquela gente se alegra,e apressa o passo, para ver quem chegará primeiro ao Monte e entrará em primeiro lugar no recinto do baile, a fim escolher o melhor lugar mas, até lá, ainda uma ou duas mulheres vão varrer o chão molhado e lamacento da estrada, com o seu próprio corpo.
O tocador é o tio Ramalho, homem “a rondar os setenta anos”, considerado o melhor dos seus tempos e já se encontra sentado com a concertina sobre os joelhos, abrindo e fechando o fole harmonioso, de onde se escapa o maravilhoso som duma melodia, tão parecidaa outras que ele interpreta, que todas elas se confundem e, põe a cabeça daquela gente em polvorosa. O sexagenário segue com a cabeça, e de olhos fechados, o movimento que faz com os braços e imprime ao instrumento musical, como um sonâmbulo, ou talvez por estar já mecanizado, devido ao hábito, que nem a agitada e barulhenta entrada das primeiras mulheres o fazem mudar de posição.
Elas arrumam as cadeiras, e sentam-se, de imediato, ao longo das paredes da cozinha, reservada para “sala de dança”. Nas outras duas divisões da habitação ficam os homens, enquanto não dançam.
A iluminação é feita pela fraca luz de três candeeiros, a petróleo, e há grande sarilho quando o vento sopra mais forte e os apaga.
As raparigas “abrem o baile” formado, apenas, por pares femininos, até que os rapazes decidem entrar na dança e os apartam. Depois, pouco a pouco, o número de dançarinos aumenta e quase não há espaço, para se dançar porque, os gaiatos, “bailam” no meio dos pares, adultos. Surgem os primeiros conflitos: há três rapazes que querem namorar a mesma rapariga. Ela dança um bocado com um, mas surge logo outro a tocar-lhe num braço e a pedir: “A menina dança?”. Para não o magoar, ela aceita, mas dá duas voltas no recinto, com o novo par e aparece outro perguntando: “A menina dança?” e logo a seguir aparece o outro e assim sucessivamente, durante toda a noite. Por vezes há ciúmes e discussões, que se tornam desagradáveis e em problemas difíceis de solucionar.
Os namorados dançam tão agarradinhos e falam tão baixinho que os gaiatos, não lhes tiram os olhos de cima, e comentam entre si. “Olha pr’aqueles, andom mesmo agarrados e ele disse que lhe dava um bejo”; “Olha, ele tem a cara mesmo em cima da dela e ê vi-lhe dar um bejo”; “Olha, e ê tamém. Tomara já ver grandi...”.
São tantos os gaiatos a dançar e a pisar os adultos, comentando depois o que ouviram dizer aos pares de namorados, que são vistos pelos organizadores do baile e são expulsos para outra divisão.
- Vá lá, gaiatos. Vão lá para dentro e façam pouco barulho. Senã, vã já pro olho da rua. Sempre a fazerem barulho e a contarem o que vêem e o que ouvem. Se os vejo a fazer a mesma coisa, nã põem cá mais os péis.
Contrariados eles dançam à roda, ou formam pares, imitando os pares de namorados. As “velhas”, sempre de olhos postos nas filhas, discutem qual das raparigas usa o melhor e mais bonito vestido e qual é a mais jeitosa. De vez em quando uma adormece e ressona de boca aberta, provocando o riso geral.
O baile ficou animado, há já cerca de duas horas que principiou, quando se ouve o bater das palmas dum dos organizadores, referindo, simultaneamente: “- Gravâncio!”
Os pares separam-se e abandonam o recinto ondeantes haviamdançado. Algumas raparigas sentam-se no colo de suas mães, ou nas poucas cadeiras vagas e as namoradeiras isolam-se com os seus pares, junto das paredes que ainda têm espaço para os acolher e comentamos seus problemas amorosos, enquanto os organizadores do baile distribuem bolachas às mulheres e bagaço,misturado com muita água, aos homens, que os pagam por bom preço. A receita, apurada, fará parte das despesas do baile e a restante que faltar, será reposta por eles.
- Raparigas..., vomos balhar à roda? - propõe uma jovem, enquanto se ergue da cadeira, onde havia estado sentada, sendo imitada pelas outras, que saltam para o meio da divisão, dando as mãos, e vão formando uma “roda humana”, que se põe em movimento. Cantando:
Olha a triste viuvinha,
ela aí vem a chorari.
Aposto que nã há-des achari,
nã há-des achar com quem casari.
Ó Zéi aperta o laço.
Ó Zéi apert’ó bem.
Depois do laço apertado
Olha, ó Zéi, fica-te bem.
A seguir os rapazes entram na roda, dando as mãos às raparigas. Agora sim, o baile de roda irá aquecer. Vai começar o despique, enquanto os homens e as mulheres apuram o ouvido, para ouvirem e depois comentarem sobrequem cantará melhor, e o que se canta.
- Quem é que começa? – pergunta uma jovem, enquanto a “roda gira calada”. Ninguém quer ser o primeiro a cantari?
- Começa tu Zefa, que cantas tam bẽi!
- Porque é que he-de ser sempre a primera?
- Vá lá. Tu é que sabes cantari!
- Não! Hoje nã he-de ser a primera. Comecem os homens!
- Ai sim! Pensas que a gente não é capaz de cantari? Tão lá vai - respondeu o Zé Manel:
Nã julguis que por ti morro.
ou por ti estrago sapatos,
ó minha boneca de cera,
minha ratada dos ratos.
- Pr’a cantaris essa parvoera, mais valia estares calado. Mas espera, ê respondo-te doutra manera - comenta uma rapariga:
Tu dizes que nã me queris,
Eu dou-te toda a rezão.
Como é que tu há-des quereri,
aquilo que te nã dão?
O desafio, começou e as cantigas dirão tudo o que eles e elas pensam e doutra forma não seriam capazes de referir.
Os homens comparo eu
com a zunida do vento.
Andom de namoro com uma,
E trinta no pensamento.
Ó amori tu não te alembras,
do dia do vento rijo,
quando estavas agarrada,
ao canudo por onde ê mijo.
- Malcriado! Nã se envergonha de cantari estas parvoeras, aqui,na frente de toda a genti - protestaram as mulheres, corando, enquanto se levantam das cadeiras, e simulam uma saída, do recinto.
A animação e o entusiasmo crescem. Toda a mocidade quer cantar a sua quadra. A princípio, faltou-lhes o tema, mas as quadras são como as cerejas, quanto mais se fazem e cantam, mais elas surgem de improviso, num rimar que parece não ter fim.
O tio Ramalho, sem lhes dar tempo de tornarem a cantar, começou a agitar o fole da concertina e os jovens voltaram a formar pares, reiniciando o baile, que pouco mais tempo poderá durar. Já se nota impaciência nas mães das raparigas porque sentem, simultaneamente, sono e frio, o último devido ao vento que sopra um pouco mais forte, àquela hora, já tardia da noite, e se intromete passando através dos intervalos das telhas, e gera um ambiente desagradável, lá dentro.
Ainda há gaiatos e homens que vão à rua, abrindo e fechando a porta, constantemente. De repente o vento sopra mais forte e apaga a chama dos candeeiros, “provocando uma desgraça”.
Os velhacos, que não dançam, imitam o estralejar dos beijos, e criam uma confusão diabólica, enquanto as mulheres pensam que os namorados se estão “a atirar” e a beijar as raparigas, ficam como loucas, e derrubam tudo o que encontram pela frente, procurando-as por todos os lados.
Acesos, os candeeiros, verificam que os jovens conversam, indiferentes ao que os rodeia. Elas amaldiçoam tudo, mas ficam radiantes por verificarem que as suas filhas não foram “engolidas pelo papão”.
Pegam nas cadeiras e saem sempre a resmungar. As filhas que vão atrás delas, senão, em suas casas, será pior…
Já na rua, formam pequenos grupos, sempre com os namorados na frente e bem à vista, enquanto escutam o coaxar das rãs, o cantar das corujas e dos mochos, dos grilos e dos ralos e iniciam o “perigoso” caminho de regresso,à aldeia,e comentam as “odisseias” do próximo dia, que será de trabalho, e os “extraordinários” acontecimentos do dia que passou, reparando, em simultâneo, na grande bola amarelada queque a lua cheia forma, acabadinha de nascer, por entre os chaparros, num horizonte longínquo e, de vez em quando, fica semicoberta por espessas nuvens negras, que escondem a fraca luminosidade que ela irradia.
Manuel Manços
https://www.facebook.com/groups/imagensdoalentejo/
Fotos retiradas da Internet, em pesquisa Google.

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