Montemor-o-Novo-Alcáçovas: 34 km (só faltam 185)
Perto de Montemor, um homem vergastava a vegetação espalhando folhas pela berma. Quando lhe perguntei porquê, mostrou-me um saco velho.
Mas era mais coisa viva do que saco: dentro, em fuga lenta - demasiado lenta para ser fuga - estavam centenas de caracóis do tamanho de polegares.
“Estes sim são muito bons.”
Vão ao lume em vinho branco com piripíri e uma batata muito redonda.
Fiquei a pensar na batata redonda e na tranquilidade com que os caracóis se preparavam para a panela. Depois continuei a tiragem, palavra que aprendi por aqui para as grandes distâncias a pé.
No Grupo Desportivo de Reguengo São Mateus tomei café com um pedreiro que se queixava do tempo. Simulei o mesmo ódio, embora tenha percebido que a chuva dele macerara mais do que a minha.
Eu fiquei com sapatilhas encharcadas; ele, com cimento liquefeito a pingar do telhado de uma casa. Desejei-lhe boa sorte sabendo que entretanto os meus pés haviam secado - e o cimento também.
Antes de Santiago do Escoural, um tractor equipado com um braço longo e insaciável comia as ervas da berma, comia os caracóis que nelas houvesse (sem vinho, piripíri ou batata), quase comia o asfalto.
Deixava um rasto verde que não era sangue mas era ferida. Daí em diante, a estrada pareceu-me um corte incapaz de cicatrizar.
Ladeavam-na sobreiros progressivamente mais velhos, de troncos quais nós cegos cobertos por musgo também ele ancestral.
Impressiona saber que deixaram de ser árvores: neles vai a memória de quem os semeou, cuidou, extraiu a cortiça. Até, espero, de quem por eles caminhou rumo a Faro.
PS - Obrigado à Cruz Vermelha das Alcáçovas pela estadia e ao restaurante As Piscinas pelo jantar.
Afonso Reis Cabral
Sem comentários:
Enviar um comentário