A horta que havia na minha rua, local onde hoje se erguem alguns prédios de vários andares, foi uma das minhas grandes fontes de aprendizagem e o local de muitas brincadeiras.
Quando queria entrar na horta empoleirava-me no grande portão, metia as minhas mãos pequeninas por entre as pesadas barras de ferro, procurava o trinco, puxava-o, e juntando todas as minhas forças, conseguia abrir o espaço suficiente para passar.
Na horta, aprendi sobre a época das culturas e sobre o amanho da terra. Aprendi a conhecer os bichos que roíam as folhas tenras e as flores que haveriam de ser frutos. A compreender os olhos tristes dos burros que andavam à roda da nora, seguindo a música das idas e vindas lamuriantes dos alcatruzes. A percorrer os caminhos da água nos regos talhados a suor e a enxada e a vê-la sumir-se na terra para dar de beber às raízes sedentas. A pressentir o enrugar das nozes lá no alto das grandes nogueiras frondosas, amadurecendo escondidas na sua capa verde. A olhar o doce pingando dos diospiros maduros que teimavam em dar cor às árvores já sem folhas. A gostar da rebeldia da erva surgindo por todo o lado, invadindo as sementeiras, e a ficar teimosamente agarrada às mãos suadas de quem a arrancava. A palpar o musgo, que nascia nas paredes e no meio das pedras assim que o tempo moldava nuvens negras no céu e se tornava húmido e frio. A observar os caracóis mouros, roliços e escuros, que saiam em vagarosos passeios aos primeiros pingos de chuva. A saborear os talos brancos das couves quando eram arrancadas da leira. A roubar os olhinhos tenros das alfaces. A procurar a primeira mudança de cor nos morangos, nas nêsperas e nos abrunhos. A ficar extasiada com o noivado das amendoeiras floridas como se eu própria fosse a princesa da lenda. A espalmar entre as mãos os figos secos estendidos em esteiras ao sol. A sonhar o escuro das noras e a escutar o coaxar das rãs do tanque grande, os únicos locais da horta que me estavam proibidos.
Por vezes, a horta enchia-se de trevos amarelos, também conhecidos por erva-azeda. O Senhor Viegas chamava-lhes boas-noites, um nome ainda mais belo. Primeiro nasciam as folhinhas verdes e eu perdia tempo sem fim, de cócoras, a procurar, sem nunca ter encontrado, o tão cobiçado trevo de quatro folhas, que me abriria as portas de uma vida mais afortunada. Depois nasciam as flores amarelas e delicadas no cimo de uma haste comprida e fina, que eu apanhava para trincar e sugar a seiva acre.
Mas o que eu mais gostava era quando o senhor Viegas pegava no arado e decidia lavrar a terra invadida de trevos. Esperava, sentada debaixo de uma árvore, os olhos seguindo o sulco do arado a desventrar a terra e a deixar para trás uma estrada de trevos desenraizados. Depois enterrava os pés na terra fofa, debruça-me sobre os trevos que jaziam, revolvia para procurar as raízes e escolhia os bolbos mais branquinhos e perfeitos, até ter uma mão cheia. Ia com eles até ao cano de pedra que transportava a água da nora. Mergulhava a mão na frescura da corrente, esfregava cada bolbo até ficar liberto da terra e depois comia cada um como se fosse a melhor iguaria do mundo.
Natércia Duarte
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