O meu nome é Terra. João Terra. Mas aqui, na minha aldeia, todos me conhecem por João Cigano. Não que eu não goste do meu apelido; para dizer a verdade, gosto, e muito. Até porque o herdei do meu falecido pai, e este do pai dele e por aí a fora, mas Cigano é o sobrenome que vai comigo. Que me assenta como uma luva. Sinto-me mesmo orgulhoso quando ouço alguém dizer — “Olha, vai ali o João Cigano”. Chamam-me assim há muito porque sempre me preocupei em defendê-los. Já lá vão... sei lá... talvez uns cinquenta anos.
Foi uma coisa que se me pegou assim à pele, como se fosse uma tatuagem, uma imagem de marca. No Alentejo todos temos uma alcunha que nos há de acompanhar a vida inteira. A mim tocou-me esta, que como vos digo, bem que podia ser o meu verdadeiro apelido.Apelido já ela é, porque aqui na região este é o nome que se dá à alcunha. Aliás, devo dizer, a palavra “cigano”, está no topo das minhas preferidas. Gosto de outras, mas esta é mesmo a minha favorita. Soa bem em qualquer língua. Senão vejamos: gitano, zingaro, gitane, gipsy, tzigane, são várias maneiras de dizer a mesma palavra, mas sempre com aquele élan sonhador e libertário que esta nos transmite quando a pronunciamos.
Para se saber porque é que assim me chamam, precisamos de recuar meio-século, pelo menos. Tal como hoje ainda acontece, esta estirpe de gente, quando aportava a uma localidade, acampava nas aforas do povoado.
As mães, alertadas com a chegada dessa maralha de tez escura, vá-se lá saber porquê, chamavam para a sua beira os filhos pequenos, protegendo-os de um medo que elas mesmo carregavam, mas na verdade, não o sabiam explicar.
Era coisa ancestral. Recomendações de dedo em riste. Conselhos recebidos em noites de invernia à roda do fogo. Um dos tantos temores que faziam parte do crescimento e da educação de então, e mesmo de agora.
Naquele tempo, eram várias as explicações para esse infundado receio: o mau olhado deitado pelas ciganas, o hipotético rapto de crianças ou mesmo o corte raso das tranças das moças pequenas. Dizia-se, então, que era para venderem para fábricas de bonecas, para serem transformadas em cabeleiras.
Mitos rurais de que toda a gente ouviu falar mas ninguém viu acontecer. É um bocado como as osgas. Todos dizem que são peçonhentas, que urinam nos olhos das pessoas fazendo com que percam a visão, mas quando se pergunta quantos casos de cegueira provocado por estes répteis conhecem, a resposta é, invariavelmente, nenhum!
Muito cedo, percebi que o problema da conflitualidade latente entre ciganos e não ciganos não está na etnia das pessoas nem na cor da pele. Está sim na civilidade de parte a parte; na organização política, social e familiar; na ostracização secular a que foram votados, e no eterno faz de conta da integração, com as culpas direitinhas pelo fracasso das ações de inclusão, atiradas para a parte mais frágil.
Um pouco como o exemplo das osgas. Todos lhes temos um certo asco. Mal as vemos, munimo-nos de imediato de vassoura ou arma semelhante e, através dela, procuramos expulsar uma certa raiva que não sabemos dominar, um instinto assassino que não sabemos explicar, esquecendo-nos de que as osgas contribuem, e de que maneira, para a sustentabilidade do meio-ambiente. Afinal, são elas as responsáveis para que não sejamos tão picados ou mordidos pelos inconvenientes e implacáveis insectos veraneantes.
Com os ciganos acontece o mesmo. É claro que se olha com desconfiança de parte a parte. O tempo fez de nós antagonistas. Curiosamente, conheço pelo menos um caso onde as crianças ciganas salvaram a escola primária de fechar. Um anseio reclamado pelos moradores dessa localidade. Não me recordo de alguma forma de agradecimento aos ciganos salvadores.
Recordo-me, sim, do meu pai me contar que, no tempo da fome, esperavam que os ciganos chegassem à aldeia para que ele e os seus comparsas pudessem roubar galinhas e borregos à vontade. Assim podiam deleitar-se com lautos petiscos, porque a quem seria apontado o dedo e, quantas vezes o cano da espingarda, era aos pobres dos ciganos. Porque verdade seja dita, para matar a fome a si e aos filhos, muitos deles também surripiavam o seu fardo de palha para dar de comer às bestas, ou mesmo uma ou outra galinha. Até porque nas entranhas daquela gente também existia um estômago que implorava por alimento.
Quantos não desprezam os ciganos mas aplaudem as trivelas do Quaresma, mesmo sabendo que este é de raça calé?! Normalmente acrescenta-se um comentário jocoso do género — “Cabrão do cigano é mesmo bom. A bola até parece que tem olhinhos!” Quantos anti-ciganos não dançaram a “Macarena” ao som do duo Azucar Moreno, duas beldades orgulhosamente ciganas. Até o Benfica já teve um treinador cigano. Lembram-se? Quique Flores, sobrinho de Lola Flores, outra cigana imortal.
Quem diz ciganos, diz negros. Sei de gente que os odeia mas amava o Eusébio, ou por outra, amavam as alegrias que aquele preto lhes proporcionava. E se o sacana do preto nos deu alegrias! Somos assim! Somos a etnia dominante, mas comportamo-nos de forma troglodita, hipócrita e desprezível.
Ficamos apenas com o filet mignon que estes nos oferecem. Ao mesmo tempo, rejeitamos via desculpa fácil tudo o que está à volta, exigindo aos outros que se integrem, quando somos nós, maioria influente, que temos o dever de os incluir.
Estão a ver porque me chamam João Cigano? Sou assim, fervo em pouca água. Na verdade, cá por dentro, naquilo que me lavra no peito, no sangue que me corre nas veias, na maneira como espreito o mundo, no modo como avalio o meu semelhante, sinto que aqui, no lado esquerdo do meu corpo, neste incessante contador de impulsos, cavalga um coração de nómada, um ser sedento de liberdade, de uma liberdade sem grilhetas, algemas ou fronteiras, de uma inabalável vontade de viver partindo e de regressar sorrindo.
In: De Coração D'Interiores de Napoleão Mira
Copiado do Blogue do nosso compadre Napoleão Mira, http://pulanito.blogspot.pt/
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