Está a ver aquela posta alta e deliciosa de bacalhau cozido com couves, cenouras, batatas e muito azeite por cima? No início do século XX, isso era coisa que só existia no Norte do país. Do Porto para baixo, a véspera de Natal era passada no mais rígido e rigoroso jejum. A partir do início do Advento, as famílias faziam jejum de carne e, na véspera de Natal, no Sul do país, era jejum total até à Missa do Galo.
A tradição é recordada por Maria de Lourdes Modesto num artigo publicado no jornal Público, em 2009. A maior especialista em comida portuguesa lembra-se que, na década de 30, depois da missa tinha finalmente direito a comer qualquer coisa – e normalmente os pais serviam um doce para quebrar o jejum. No dia 25, então, era servido um almoço completo e, no Alentejo, onde vivia com a família, era sempre porco – peru nem vê-lo.
No Funchal, a tradição também era a do jejum na véspera e a do porco no Dia de Natal. De madrugada, depois da Missa do Galo, era servida uma canja e um cálice de vinho. Na verdade, a festa só começava depois da missa.
No Norte, ninguém rezava pelo Menino Jesus à meia-noite. A essa hora toda a gente estava sentada à mesa, à volta de um polvo ou de um bacalhau. Só as famílias da nobreza nortenha fugiam à tradição. Numa investigação sobre "os alimentos nos rituais familiares portugueses", Maria Antónia Lopes, do Centro de História da Sociedade e da Cultura, da Universidade de Coimbra, publicou um menu de uma ceia de Natal de uma família nobre do Norte, em 1891: puré de jardineira, arroz de fantasia caseira, costeletas nacionais e "ervilhas idem" e couve flor composta. Para sobremesa, bolo experimental, pudim incógnito e broas de Natal, entre outros.
Hoje, bacalhau cozido é coisa que não falta no dia 24 em casa da Família Mistério. Adoro aquelas postas altas e deliciosas de bacalhau que se separam em lascas suculentas. Mesmo as crianças estão rendidas a esta maravilha. Aliás, cá em casa, só há um alimento que cria um intenso e dedicado debate: o bolo-rei. Eu compro sempre, já a minha querida e prezada Mulher Mistério odeia.
Mas, com a implantação da República, um bolo com "Rei" no nome virou um ultraje. A venda foi proibida pelo Estado e só a gula e a imaginação dos portugueses é que o conseguiu manter vivo. Antes que os políticos percebessem o que se estava a passar, já as pastelarias vendiam o mesmo bolo, chamando-lhe Bolo de Natal, Bolo de Ano Novo ou até Ex-Bolo-Rei.
Eu, por mim, como-o com qualquer nome ou de qualquer maneira e feitio. Tal como o bacalhau, o polvo, o peru ou qualquer outra maravilha da tradição culinária portuguesa. O que é importante é que seja delicioso.
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