Naquele tempo, nenhuma daquelas pessoas levantava o cálice de vinho de encontro à luz para lhe apreciar a cor. Não se conhecia sequer quem o fizesse, desconhecia-se por completo essa possibilidade.
Na verdade, nenhuma daquelas pessoas bebia vinho em cálices, mas sim em copos de vidro grosso que eram batidos no balcão de mármore ou na mesa de madeira assim que ficavam vazios. E ficavam vazios muitas vezes.
Naquele tempo, aquelas pessoas não bebericavam com a ponta dos lábios, enchiam a boca de vinho. Fresco, maduro, tinto, era bebido com uma sede própria, incomparável com a sede de água ou de qualquer outro líquido. Era uma sede como um incêndio, precisava de ser extinta. Se houvesse pouco tempo, um pequeno lanche, um encontro de amigos, uma tira de toucinho frito para dividir a meio da manhã, bebia-se uma garrafa de litro.
Naquele tempo, aquelas pessoas não bebericavam com a ponta dos lábios, enchiam a boca de vinho. Fresco, maduro, tinto, era bebido com uma sede própria, incomparável com a sede de água ou de qualquer outro líquido. Era uma sede como um incêndio, precisava de ser extinta. Se houvesse pouco tempo, um pequeno lanche, um encontro de amigos, uma tira de toucinho frito para dividir a meio da manhã, bebia-se uma garrafa de litro.
De vidro verde, com duas estrelinhas moldadas ao fundo do gargalo, tinha um depósito de dez escudos. Essa era a mesma garrafa que se beberia com facilidade, a escorregar ligeira, num almoço solitário à sombra, com marmita trazida de casa. Se houvesse mais companheiros nessa hora de almoço, gente a descansar as mãos e o corpo, trabalhadores de várias artes do campo, ou pedreiros e serventes, ou mecânicos e aprendizes, então seria necessário um garrafão.
Cinco litros bem medidos diretamente da pipa. O garrafão era revestido por um entrançado de vime, como se estivesse vestido por uma cesta. Tinha uma pega redonda a unir o gargalo e o corpo, que ajudava quem quisesse levantá-lo e beber logo do garrafão. E havia muita gente a aproveitar essa liberdade. Além disso, naquele tempo, nem sempre havia copos à mão.
Os garrafões viajavam bem. Nos alforges dos burros ou das motorizadas, seguiam sempre equilibrados, dois garrafões cheios na ida ou, no regresso, dois garrafões vazios. Naquele tempo, eram muitas as pessoas que não imaginavam uma viagem sem garrafão entre os bens mais necessários. Nas excursões de autocarro ou nas paragens em todas as estações e apeadeiros dos comboios inter-regionais, quando chegava a hora, havia sempre um guardanapo de pano que se desembrulhava, uma navalha que se abria e um garrafão. Naquele tempo, não havia copos de plástico. Havia copos de vidro que eram cheios até ficarem rasos, a uma gota de transbordar.
As paredes das tabernas cheiravam a vinho. Era como se aquele cheiro se tivesse entranhado na pedra. O taberneiro enchia o copo com uma precisão afinada pela repetição. O vinho formava uma superfície de brilho que se erguia ligeiramente acima do rebordo do copo. Muito sério, o freguês fixava esse trabalho e exigia que o copo ficasse bem cheio, até ao máximo. Era exatamente isso que acontecia. O taberneiro nunca entornava ao encher e o freguês nunca entornava ao levar o copo à boca, de mindinho espetado, de olhar pousado no equilíbrio.
Naquele tempo, o vinho era sinónimo de muitas coisas, nem todas certas. Durante o futuro inteiro, seremos sempre alguém que esteve naquele passado. Não podemos fingir que não vivemos. Ainda assim, por tudo aquilo que não era certo, que era tão triste, ainda bem que aquele tempo já passou.
José Luís Peixoto
Copiado do Blog http://imenso-sul-alentejo.blogspot.pt/
Cinco litros bem medidos diretamente da pipa. O garrafão era revestido por um entrançado de vime, como se estivesse vestido por uma cesta. Tinha uma pega redonda a unir o gargalo e o corpo, que ajudava quem quisesse levantá-lo e beber logo do garrafão. E havia muita gente a aproveitar essa liberdade. Além disso, naquele tempo, nem sempre havia copos à mão.
Os garrafões viajavam bem. Nos alforges dos burros ou das motorizadas, seguiam sempre equilibrados, dois garrafões cheios na ida ou, no regresso, dois garrafões vazios. Naquele tempo, eram muitas as pessoas que não imaginavam uma viagem sem garrafão entre os bens mais necessários. Nas excursões de autocarro ou nas paragens em todas as estações e apeadeiros dos comboios inter-regionais, quando chegava a hora, havia sempre um guardanapo de pano que se desembrulhava, uma navalha que se abria e um garrafão. Naquele tempo, não havia copos de plástico. Havia copos de vidro que eram cheios até ficarem rasos, a uma gota de transbordar.
As paredes das tabernas cheiravam a vinho. Era como se aquele cheiro se tivesse entranhado na pedra. O taberneiro enchia o copo com uma precisão afinada pela repetição. O vinho formava uma superfície de brilho que se erguia ligeiramente acima do rebordo do copo. Muito sério, o freguês fixava esse trabalho e exigia que o copo ficasse bem cheio, até ao máximo. Era exatamente isso que acontecia. O taberneiro nunca entornava ao encher e o freguês nunca entornava ao levar o copo à boca, de mindinho espetado, de olhar pousado no equilíbrio.
Naquele tempo, o vinho era sinónimo de muitas coisas, nem todas certas. Durante o futuro inteiro, seremos sempre alguém que esteve naquele passado. Não podemos fingir que não vivemos. Ainda assim, por tudo aquilo que não era certo, que era tão triste, ainda bem que aquele tempo já passou.
José Luís Peixoto
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