JOGO DO ARCO OU DA GANCHETA (Pormenor - século XX). Fotografia de autor desconhecido (30,5x23,5 cm). Museu da Guarda.
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A “corrida de rodas” era um jogo da minha infância, para o qual tenho reservado um lugar muito especial nas gavetas espaçosas da minha memória.
Não tinha época certa. Bastava que alguém com o corpo a pedir folia se lembrasse disso e lançasse o repto:
- Vamos correr com as rodas?
Aceite este desafio, cada um de nós corria até casa para ir buscar a sua roda, bem como o indispensável guiador.
Eu e os do meu bando, nos anos cinquenta do século passado, tínhamos no Largo do Espírito Santo, em Estremoz, o Quartel-General das nossas operações. Ali nascemos e ali crescíamos, temperados pelas brincadeiras que nos enchiam as medidas.
Éramos: eu, o Rodrigo André e o irmão, o Manuel Maria Gato, o Armando Pereira, o António Maria Craveiro, o Manuel da Avó e o Jorge Maluco.
As rodas eram das mais diversas: aro cilíndrico de ferro maciço, roda de bicicleta, aro de pneu e cinta metálica de barril ou de pipa. Esta última era a mais difícil de conduzir e era sempre um “desenrascanço” que se arranjava à do Silva, tanoeiro da Horta do Quinton, na rua da Levada, onde funcionava a Fábrica de Conservas “Alves e Martins, Lda”. A de pneu também desenrascava e tinha uma boa aderência ao solo, o que era uma vantagem para os mais inábeis. Já a roda de bicicleta era uma senhora roda, pois pelo seu maior diâmetro, atingia facilmente maior velocidade, com menos esforço, além de que pela maior largura do aro, assentava melhor no solo, o que lhe conferia uma maior estabilidade. Porém, para os mais hábeis, o “fórmula 1” das rodas, era o aro cilíndrico de ferro maciço, com menor diâmetro que as rodas de bicicleta, mas também mais estreito e pesado que aquelas. Tomava cá uma embalagem… E esta era tanto maior quanto maior fosse o diâmetro do aro.
Um complemento indispensável à boa condução da roda era o “guiador”, confeccionado com arame ou varão de ferro, tendo numa das extremidades um desvio em U, para encaixe, condução e orientação da roda. Este desvio era para o lado esquerdo da extremidade no caso dos dextros e para o lado direito da extremidade no caso dos canhotos. A outra extremidade era aquela pela qual se empunhava o guiador e tinha uma dobra a 180º, para não ferir a mão, podendo mesmo possuir uma protecção improvisada, como tiras de pano enrolado ou um cabo de madeira ou de cortiça. O guiador em varão de ferro era o mais apreciado e devia ter um tamanho adequado que facilitasse a condução da roda. Quanto maior fosse o guiador, mais fácil era a condução da roda. Porém, o controle destas nas curvas, aconselhava a que o guiador não fosse demasiadamente grande. E nós sabíamos o tamanho exacto a dar ao nosso guiador.
As corridas de rodas realizavam-se em qualquer altura do ano, mas eram mais apreciadas na Primavera ou nos dias de Inverno sem chuva, já que assim davam para aquecer o corpo com o esforço e não havia o risco de derraparmos e nos estatelarmos no chão molhado. Já de Verão eram absolutamente desaconselháveis, uma vez que com a calorina, ficávamos com os bofes de fora.
Reunidos os apetrechos para a corrida, combinávamos o local de partida, o trajecto e o local de chegada. A única regra era que não valia empurrar.
Um dos trajectos possíveis era: Largo do Espírito Santo junto ao lampião (descida e viragem à direita), Rua da Levada, Travessa da Levada (viragem à direita), Rua do Almeida (viragem à direita), Largo da Liberdade (viragem à esquerda), Rua do Casco (subida e viragem á direita), Rua das Freiras (viragem à direita) e Largo do Espírito Santo (onde se localizava a meta).
Dada a partida por quem havia sido acordado que o fizesse, começávamos alinhados, mas a partir daí, era “o ver se te avias”, “pernas para que te quero”, acondicionadas por muita genica e uma vontade indomável de ganhar.
Circulava-se então bem pelas ruas, pois estas não estavam apinhadas de carros e os eventuais transeuntes colaboravam, desviando-se, avisados pela sonoridade galopante das próprias rodas, especialmente as de ferro maciço e as de bicicleta, que à medida que galgavam a calçada à portuguesa, em uníssono com ela, gemiam ais capazes de fazer ressuscitar um morto bem falecido. Corria-se à roda livre, embora se ouvisse por vezes alguma vociferação mais rabugenta.
- Lá andam os gaiatos a correr outra vez! Não há maneira de sossegarem!
Apesar disso, a maioria das pessoas era compreensiva, sabia tal como nós, que a brincadeira era o nosso trabalho, era a nossa maneira de aprendermos a ser grandes. Por vezes lá tínhamos que nos desviar da carroça de algum aguadeiro ou de uma casa agrícola, que circulavam pelas ruas. Porém, era raro.
Por vezes, sobretudo nas curvas, alguém mais inábil deixava cair a roda, pelo que se tinha de abaixar para a apanhar e poder prosseguir a corrida. Porém, a vitória era então mais difícil. Os outros nem pestanejavam, pois corrida é corrida e concentração e empenho são receitas de êxito.
Na subida da rua do Casco é que se via quem tinha pernas. Era aqui que se esfrangalhava o pelotão, que entrava na recta final da rua das Freiras. A descida do largo do Espírito Santo era já realizada em travagem a fundo, com o Alegrete à direita e a Casa do Manuel Maria Gato ao fundo, a ameaçar estamparmo-nos nela.
À chegada, o vencedor ufanava-se com um sonoro e repetido:
- Ganhei! Ganhei! Ganhei!
Os vencidos diziam então de suas razões, esperançados que estavam em melhores dias.
Descansava-se então um bocado, para retemperar as forças e só depois se partia para outra brincadeira, que até podia ser nova corrida de rodas, se a exigência de desforra por parte de alguém fosse aceite pela maioria.
Um campeão de corrida de rodas é fruto da conjugação de múltiplos factores: boa tracção às pernas, bom fôlego, calçado aderente, estratégia adequada, bom equipamento (roda e guiador), perícia (especialmente nas curvas) e, é claro, espírito de ganhador. Tirando este último, não reunia por vezes todas estas condições, pelo que nunca passei dum condutor mediano. Nunca deu para ser um ás da corrida de rodas. Fui um ás, mas noutro jogo, o do botão. Lá diz o rifão:
- “A roda anda, anda, mas também desanda”. 0
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